O balanço da carroça era nostálgico. Sob o sol do meio-dia, cercada de pessoas marcadas pelo trabalho na terra, ela cantarolava uma canção há muito esquecida. Ninguém ouvia, a carroça e os cavalos cuidavam de abafar o som de sua voz. De olhos fechados, ela imaginava sua mãe dançando em volta da fogueira, os cabelos cacheados pareciam ondas que subiam e desciam no ritmo da música. Apenas se deixou levar pelas memórias e melodias de sua infância, a saudade pesada em seu peito.
– Chegamos! - a carroça parou abruptamente. Ela se despediu, jogou sua trouxa por cima do ombro e foi andando em direção a entrada da muralha.
Suas roupas de viajante não atraíam muita atenção, permitindo que ela apenas andasse e observasse a movimentação da cidade que acordava. O cheiro de bebida impregnava suas narinas, a quantidade de bares perto da estrada principal era de assustar. Havia homens e mulheres largados pela calçada, roncando. Ela só podia imaginar a ressaca que eles teriam ao despertarem. Tirou um mapa do bolso e identificou seu destino, só precisava andar mais algumas quadras.
A pensão estava vazia naquela hora da manhã, os inquilinos ainda dormiam e o horário do rush ainda estava longe. Aproximou-se do balcão e depositou duas moedas de ouro. O atendente a olhou espantado.
– Seu melhor quarto, por favor. - pediu.
Ele a guiou por um corredor mal iluminado. A fumaça das tochas não escapava rápido o suficiente pela janela aberta. O quarto ficava no final; era grande, com uma cama de casal coberta num lençol de veludo vermelho. Possuía um armário de madeira maciça e uma mesa pequena num canto. A vista dava para a praça central, onde ela podia observar os mercadores arrumando suas barracas.
– Muito obrigada. - esperou o atendente sair para tirar a grossa capa empoeirada e se jogar na cama. Queria um banho quente, mas isso teria que esperar. Tinha um objetivo a cumprir. De sua trouxa, tirou um livro grosso, encadernado a mão, de capa de couro decorada em detalhes dourados. Não havia título. Deixou um suspiro escapar de sua boca.
Na mesa, apoiou o livro e pegou um vidro de tinta e uma pena. Sentou-se e pôs-se a escrever. Não podia deixar que as ideias lhe escapassem, ele não ia ficar satisfeito se entregassem uma história pela metade.
Já era noite quando levantou os olhos da página. Tinha seguido um bom ritmo e já podia considerar que estava perto do fim. Pelo menos por enquanto. Seu jantar foi servido no quarto, um criado acendera a lareira e lhe dera uma vela quando o sol começou a baixar. As únicas palavras que escaparam de sua boca nesse tempo foram para agradecer o atendente. Agora, só precisava esperar por ele, não devia demorar muito.
De sua janela, observou a praça ficar cada vez mais deserta. Os mercadores iam guardando suas coisas, desmontando suas barracas. Carroças se afastavam, carregando consigo a luz de seus lampiões. As estrelas iluminavam o céu naquela noite sem lua.
Apoiou as costas na cadeira e deixou sua mente vagar mais uma vez. As memórias de sua mãe dançando voltaram, mas agora ela estava acompanhada por um homem negro, alto. A garota sorriu enquanto via seus pais felizes naquele momento distante, notas da música escapando por seus lábios.
– Pontual como sempre. - ela falou sem abrir os olhos. O vento frio que tomara conta do quarto e apagara a lareira era indicação de que ele chegara.
– Espero que esteja tudo em ordem. Não teve problemas? - a voz dele era suave e rouca, combinava com a idade que não transparecia em seu rosto. A pele negra e os olhos castanhos eram para ela como chegar em casa depois de uma longa caminhada.
– Não, já aprendi a ficar invisível. Ninguém espera que eu seja a Guardiã das Histórias. - ela sorriu – Eles esperam por você, pai.
– É bom que não te conheçam, a fama traz empecilhos ao nosso trabalho. Vamos, mostre-me o que conseguiu hoje.
Ela o levou até o livro. Os detalhes da capa brilharam com um tom azulado quando ele tocou no couro. O livro se abriu e figuras dançaram no ar, como hologramas, encenando as histórias que ela escrevera – princesas dançando em bailes; nobres conspirando contra o rei; o príncipe solitário no jardim; esperando a ordem para ir para a guerra; a rainha entregando sua filha recém-nascida a uma criada – e então as figuras sumiram e o livro se fechou num baque.
– Muito bem. Sabe que terá que acompanhar a menina, não? - ele falou, acariciando o rosto da filha.
– Sei, é por isso que estou aqui. A criada mora nesse vilarejo.
– Não se deixe levar pela história, essa é apenas a primeira de muitas que você vai registrar.
– Pode deixar, eu aprendi com o melhor.
– Fique em paz, Elyon.
– Fique em paz, pai.
Ele desapareceu numa brisa e ela ficou sozinha. Estava feliz de ter feito um bom trabalho, era a primeira vez que ele a deixava seguir uma história sem supervisão, não iria decepcioná-lo. Se tornaria a maior Guardiã do mundo!
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Elyon
FantasyEla corre o mundo atrás de histórias, é o seu trabalho garantir que todas sejam preservadas. Afinal, ela é a Guardiã. --- Isso começou como um conto, mas talvez se torne algo maior. Vamos ver onde isso vai dar.