Flash, luz e escuridão.

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Flash, luz e escuridão

A silhueta da cidade estava refletida nos olhos de Raul, o serpentear dos prédios, a frieza estampada em cada um, ali também estavam os garotos e os seus punhos. Ele não entendeu a agressão, Raul só estava sentado, na praça, sem oferecer ameaça a não ser estampar a desigualdade existente entre o asfalto e o concreto.

Ele nem sequer estendeu a mão, nunca mendigava . Limpava a torre da catedral, entregava panfletos, fazia artesanato e vendia, mas pedir, receber sem se esforçar pra isso? Nunca! Carregava esse lema consigo como resquício da antiga vida , o resto de humanidade que possuía.

Estava na rua já há algum tempo. Perdera o emprego, não tinha mais família. Era a idade, diziam, os empregos não apareciam mais. Acabou em um hotel. O resto das economias acabara e no fim se viu na praça, embaixo do coreto com mais três pessoas. Um perto do outro tentando vencer o frio de Agosto. Mas naquela noite só tentava amortecer os membros doloridos com um pouco de cachaça. Sim, acabara bebendo. Mas não havia outra escolha, quando a fome e o frio mostram os dentes na sua cara você faz o possível para dormir e esquecer. Esquecer toda dor, esquecer Isabela.

Isabela, sua doce menina. Inteligente, dedicada, humilde, linda. A rua e aquela situação, não eram tão dolorosos como foi perdê-la. Estuprada e morta. Quatro rapazes , de boa família, brancos, estudantes de uma universidade federal como ela. Não ficaram nem mesmo dois dias na cadeia. Dois viraram médicos, um ironicamente advogado e o outro morreu de overdose. Bom, pelo menos alguma justiça.

Raul não percebeu quando a madeira fria acertou seu rosto do lado esquerdo, ele cambaleou e tentou se proteger em vão dos socos e chutes. O sangue quente escorreu, as costelas e braços estavam amortecidos pela intensidade dos golpes. No ouvido esquerdo só havia um zumbido constante enquanto o direito captava os risos e ofensas: "vagabundo!", "você suja a minha cidade!", "vai trabalhar, não polua minha vista!" "mendigo imundo!" "preto sujo!".

Flash, luz e escuridão.

No fim daqueles minutos que pareceram horas ele estava no escuro. Era frio, mas ele se movia, com fluidez poderia se dizer. Fosse qual fosse aquele lugar era confortável. Os olhos estavam abertos, mas ele não enxergava. "Cego!", pensou. Quis ver a extensão dos danos, o quanto estava machucado, saber se havia algo além da cegueira. Esse pensamento foi formado quase como algo físico, era essa a sensação. A escuridão se dissipou, a visão passou de nenhuma a turva e de turva a clara, ele estava em um centro cirúrgico; bom, pelo menos ele achava que estava, lembrava o dos seriados médicos que assistia com a filha.

Isabela, sua doce menina. Inteligente, dedicada, humilde, linda. Com o rosto destruído, com o corpo dilacerado. Estuprada e morta. Quatro rapazes, de famílias evangélicas, se revezando no corpo dela, ficaram em celas especiais, amigos importantes. As desculpas do juiz, os álibis que funcionaram, sem DNA, nem tentativas, nem respostas. Dois tem meninas agora, um perdeu a esposa no parto e o outro foi arrastado pela morte . Bom, pelo menos alguma justiça, duas que ainda podiam acontecer, duas aconteceram.

Não entendeu por que estava em pé em uma sala de cirurgia. Caminhou na direção da mesa e viu a si mesmo deitado lá. Havia um médico quase montado em seu peito, uma enfermeira injetando algo ao soro preso ao braço e cortando o silêncio havia o som incessante da máquina que monitorava seus sinais vitais. A visão fez o caminho reverso e ele estava novamente na escuridão. Ele, ela e o silêncio.

Ali, naquele umbral esquálido, o silêncio era quase físico. Raul podia sentir seu gosto, tocá-lo, até mesmo arriscar as suas formas. Com o tempo o silêncio alastrou-se também por dentro dele, passando a fazer parte das suas veias tanto quanto o sangue. Não que fosse possível senti-lo arrastando-se vagarosamente pelos órgãos e tecidos, não, ele realmente passava despercebido, real, furtivo, sussurrando sem função.

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⏰ Última atualização: May 02, 2017 ⏰

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