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Já se aproximavam às onze horas da noite, o fim de mais um fatídico dia de eleição na antiga Paris. Pierre encheu mais uma vez sua taça com o vinho.

Já deveria estar embriagado, pois não sentia uma única gota de sono. Ao redor de si, o salão se expandia em muitas cores e luzes; desde o monótono marrom claro que tingia todos os móveis de madeira do apartamento, até as várias exuberantes e exageradas cores das roupas (diga-se de passagem, baratas e gastas) dos participantes da festa; da suave melodia emanada da vitrola no centro da sala, à enorme confusão de risos e vozes das pessoas em volta dela. E que pessoas eram... Comerciantes falidos, políticos corruptos, mafiosos, charlatões e velhos carrancudos que não se cansavam de vangloriar os tempos antigos. Tudo isto regado à devassa diversão que cigarros, bebida e prostitutas poderiam fornecer. E o cheiro de toda aquela anarquia já provocava náuseas em Pierre.

Ele estava no quarto e ultimo andar de um antigo prédio do distrito de Mark's Nero, um antigo bairro operário francês, no subúrbio de Paris. O prédio antigamente fora um hotel, mas com a grave crise que acometeu o setor imobiliário antes do início da segunda guerra, teve de fechar as portas. O dono abandonou-o, e desde então, o prédio fora tomado por mendigos e delinquentes, enquanto seus últimos andares foram adquiridos por Mademoiselle Julie Desanté (a grande cafetina daquele bairro, uma conservada senhora de quarenta e dois anos, que metida a nobre e pomposa, vivia mergulhada em sedas, joias e perfumes caros) e convertidos em um bordel. A espelunca era tudo, menos luxuosa, porém a influência de Julie e sua fama fazia com que tivesse dos mais variados tipos de frequentadores: de jovens cavalheiros a nobres caídos, que viviam em desgraça permanente após os saldos da guerra; de senhores de outras regiões da cidade, a jogadores de cartas e trapaceiros. Pierre fazia parte destes últimos, mas não por que queria, e sim, por que era esta sua natureza. Era o início da década de cinquenta, e as pessoas ainda tentavam normalizar suas vidas após o alvoroço que a ultima guerra provocara. Pierre não lutara, mas tirou dela o máximo de proveito que pudera. Antes da invasão nazista, trabalhara como alfaiate ganhando o necessário para se alimentar, porém, assim que a ocupação chegou aos becos, resolveu fazer sua fama. Como contrabandista ajudou os dois lados, tanto resistência quanto invasores. A única coisa que lhe importava era salvar a própria pele, então, o jeito era se virar como podia. Traficou armas e informações para as milícias nacionalistas, em troca de boa quantidade de dinheiro. Aos alemães fornecia subsídios, e até nomes – se houvesse muito dinheiro envolvido – além dos tão apreciados charutos franceses. Ah, e como se dera bem nesta época. Tudo terminara há cinco anos, com a chegada dos americanos, mas parecia ter sido ontem. Após a guerra viu muitos de seus amigos e parceiros de trapaças pendurados na forca - A maioria assassinada pela própria população – mas para sua sorte, escapara ileso, e até com algum mérito por ajudar os rebeldes. Sua discrição e o modo sorrateiro de agir lhe garantiram mais alguns anos de falcatruas pelos subúrbios, e até alguns privilégios, pois quando era preso, sempre havia algum amigo grato que o ajudava a ser solto – mas na maioria das vezes, o suborno era mesmo a única saída. E fora com suborno que ele acabou com quase todo o dinheiro que conseguiu durante a guerra.

Assim era Pierre, um homem astuto e ligeiro que fazia de tudo para se sair bem em todos os aspectos, e não se importava se isto soava como egoísmo, afinal, era a única coisa que sabia fazer bem na vida.

Levantou-se desajeitadamente do sofá e balbuciou alguma gracinha para a prostituta ao seu lado, dirigindo-se até a sacada daquele andar. Não estava totalmente bêbado, mas sentia-se um pouquinho mais espontâneo. O ar lá fora era extremamente reconfortante, e parecia livrar seus pulmões de todos os odores desagradáveis que respirara no salão de festas do prostíbulo. Ali, sozinho na penumbra, segurando uma taça com um vinho barato, reparou o quão descuidado parecia estar. Vestia um sobretudo marrom, presente de seu pai, que se encontrava todo abarrotado e repleto de manchas de vinho e batom. Teria o retirado, mas a camiseta branca que usava por baixo encontrava-se em igual estado, e além disto, aquela era uma noite fria em razão das constantes chuvas fora de estação. Pierre tomou um gole de seu vinho a passou a reparar na cidade que se estendia abaixo de si, a antiga Paris, com suas vielas e becos mal iluminados por postes de pequena estatura. O breu era ameaçador e enormes nuvens carregadas de chuva ameaçavam desabar do céu a qualquer momento.

A mulher da meia noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora