X

207 10 4
                                    

Numa dessa manhãs – justamente na véspera do meu regresso a Guiães – o tempo, que andara pela serra tão alegre, num inalterado riso de luz rutilante, todo vestido de azul e ouro, fazendo poeira pelos caminhos, e alegrando toda a natureza, desde os pássaros até os regatos, subitamente, com uma daquelas mudanças que tornam o seu temperamento tão semelhante ao do homem, apareceu triste, carrancudo, todo embrulhado no seu manto cinzento, com uma tristeza tão pesada e contagiosa que a serra entristeceu. E não houve mais pássaro que cantasse, e os arroios fugiram para debaixo das ervas, com um lento murmúrio de choro.

Quando Jacinto entrou no meu quarto, não resisti à malícia de o aterrar:

– Sudoeste! Gralhas a grasnar pôr todos esses soutos... Temos muita água, Sr.D.Jacinto! Talvez duas semanas de água! E agora é que se vai saber quem é aqui o fino amador da Natureza, com esta chuva pegada, com vendaval, com a serra toda a escorrer!

O meu Príncipe caminhou para a janela com as mãos nas algibeiras:

– Com efeito! Está carregado. Já mandei abrir uma das malas de Paris e tirar um casacão impermeável... Não importa! Fica o arvoredo mais verde. E é bom que eu conheça Tormes nos seus hábitos de Inverno.

Mas como o Melchior lhe afiançara que a "chuvinha só viria para a tarde", Jacinto decidiu ir antes de almoço à Corujeira, onde o Silvério o esperava para decidirem da sorte de uns castanheiros, muito velhos, muito pitorescos, inteiramente interessantes, mas já roídos, e ameaçando desabar. E, confiando nas previsões do Melchior, partimos sem que Jacinto se vestisse à prova de água. Não andáramos porém meio caminho, quando, depois dum arrepio nas árvores, um negrume carregou e, bruscamente, desabou sobre nós uma grossa chuva oblíqua, vergastada pelo vento, que nos deixou estonteados, agarrando os chapéus, enrodilhados na borrasca. Chamados pôr uma grande voz, que se esganiçava no vento, avistamos num campo mais alto, à beira dum alpendre, o Silvério, debaixo dum guarda-chuva vermelho, que acenava, nos indicava o trilho mais curto para aquele abrigo. E para lá rompemos, com a chuva a escorrer na cara, patinhando na lama, contorcidos, cambaleantes, atordoados no vendaval, que num instante alargara os campos, inchara os ribeiros, esboroava a terra dos socalcos, lançara num desespero todo o arvoredo, tornara a serra negra, bravamente agreste, hostil, inabitável.

Quando enfim, debaixo do vasto guarda-chuva com que Silvério nos esperava à beira do campo, corremos para o alpendre, nos refugiamos naquele abrigo inesperado, a escorrer, a arquejar, o meu Príncipe, enxugando a face, enxugando o pescoço, murmurou, desfalecido:

– Apre! que ferocidade!

Parecia espantado daquela brusca, violenta cólera duma serra tão amável e acolhedora, que em dois meses, inalteradamente, só lhe oferecera doçura e sombra, e suaves céus, e quietas ramagens, e murmúrios discretos de ribeirinhos mansos.

– Santo Deus! Vêm muitas vezes assim, estas borrascas?

Imediatamente o Silvério aterrou o meu Príncipe:

– Isto agora são brincadeiras de Verão, meu senhor! Mas há de V. Exª. ver no Inverno, se V.Exª se agüentar pôr cá! Então é cada temporal, que até parece que os montes estremecem!

E contou como fora também apanhado, quando ia para a Corujeira. Felizmente, logo de manhã, quando sentiu o ar carrancudo e as folhinhas dos choupos a tremer, se acautelara com o chapéu de chuva e calçara as suas grandes botas.

– Ainda estive para me abrigar em casa do Esgueira, que é um caseiro de cá. Aquela casa, ali abaixo, onde está a figueira... Mas a mulher tem estado doente, já há dias... e como pode ser obra que se pegue, bexigas ou coisa que o valha, pensei comigo: Nada, o seguro morreu de velho! Meti para o alpendre... E o senhor D. Jacinto é voltar para casa, e mudar-se, que temos um dia e uma noite de água.

A Cidade e as Serras (1901)Onde histórias criam vida. Descubra agora