Capítulo Único

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Uróboro

(Absorva o mau e ele absorverá você)

(1988- à eternidade)

O que irei confessar aqui e agora precisa ficar somente entre nós, tudo bem? Não me recordo com precisão de quando tudo começou, mas sei que logo nos meus 13 anos esse desejo já queria se propagar em mim. Lembro-me que após as aulas de literatura eu saía à procura de garotas com olhos de ressaca como a de Bentinho em Machado de Assis, confesso que nunca havia entendido tal definição, até que alguns anos depois eu conheci a minha oblíqua dissimulada. Ela tinha a pele mais fresca e sedosa que eu conheci - tirando seus braços, seus terríveis braços - e eu a queria como um alcoólatra deseja outro copo cheio de Whisky, mas calma, não romantize a história ainda, deixe-me terminar.  

Eu já era adulto quando conheci Edgar Allan Poe, admito que eu nunca tinha lido nada mais excitante. Edgar fez com que meu desejo oculto se reacendesse, a forma como ele falava do amor e da morte em uma única frase fazia parecer que esses dois abstratos eram um só, como se tivessem sido feitos um para o outro. Machado também foi importante para a minha história, com ele eu aprendi a escolher minuciosamente cada uma. Ele me apresentou os olhos. Ah, os olhos... 

Lembra-se da oblíqua dissimulada que conheci há anos atrás? Ela foi o meu primeiro grande amor, e graças a Edgar eu aprendi a eternizá-la em mim. Eu a matei, sob minhas unhas ainda deve ter o cheiro da sua carne fresca. Lembro-me o quão deleitoso foi massagear seus órgãos enquanto seus globos oculares perdiam aquela aparência de ressaca. Não me recordo do gosto que Samanta tinha, pois ela foi a primeira de oito dissimuladas, mas sempre que sinto cheiro de carne de porco me faz pensar em seu sangue escorrendo em minha boca enquanto sua carne se alojava nas fendas entre meus dentes. Ela era tão saborosa que por vezes sinto vontade de revivê-la só para prová-la novamente. Eu nunca conheci nem uma igual a ela, mas agora Samanta estava dentro de mim, eternamente em minha pele. Respirando o ar que respiro e se alimentando do que eu me alimento.

Chacoalhando o vidro com todos os olhos que um dia foram de ressaca e cheios de brilho eu encontrei os de Samanta, já não tinham aquela vida que um dia me cativou e o castanho escuro já estava esbranquiçado. Não me serviam de mais nada, no entanto era bom tê-los de lembrança, já que ela foi a minha preferida.

Abri a porta do guarda-roupa e guardei o recipiente, senti uma coceira em meus braços que tratei de saciar enquanto puxava minha roupa de caça junto com o arquivo das dissimuladas, a minha boca salivava só por imaginar o sabor da carne. Levei o dedão à boca e o chupei ansiando que ainda houvesse um resquício do gosto da última refeição. Senti apenas o gosto da minha pele amarga com dedos calejados. Hoje era aniversario de morte de Samanta, o dia de presenteá-la, então tirei a ficha da 9 junto com sua foto que tirei dias atrás em um bar, ela era perfeita. Sua pele esbranquiçada parecia ser transparente feito gelo, o nariz era arrebitado com o dorso quadrado, mas quando chegava à asa ele fazia aquele efeito redondo e isso fazia com que todo o resto se encaixasse perfeitamente, principalmente seus lábios finos, longos e desenhados no batom vermelho em que estava usando. Ela não aparentava ter mais do que dezesseis anos.

- NÃO! – rugi irritado ao perceber que a foto não havia captado seus olhos, pois ela estava distraída tomando um drinque. – Merda!

Peguei a ficha com seu endereço, joguei na mochila e sai porta fora. Era hora de caçá-la!

***

Sua casa parecia escura e silenciosa até que uma ventania de outono fez balançar o sino que estava pendurado, ele causou um som que irritava os meus ouvidos. Corri com passos silenciosos até a entrada da casa, olhei pela janela e não avistei ninguém no interior.  Abri a janela com cautela para não fazer barulho, passei uma perna e depois a outra para entrar, pisei silenciosamente no chão, mas minhas botas duras rangeram ao tocar o assoalho. Fechei a janela atrás de mim e a tranquei, arrumei a balaclava em minha cabeça e as luvas em meus dedos, outra vez senti uma coceira no braço, mas fui obrigado a ignorá-la. Ouvi os passos de alguém vindo em minha direção, o chinelo fazia um som cada vez mais alto. Espremi-me contra a parede e a vi se aproximar da cozinha, estava distraída mexendo em seu celular, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água sem ao menos olhar. Ergueu a manga de seu pijama e saiu — os cabelos lisos e castanhos tinham o mesmo movimento que seu corpo –. Saí e a acompanhei, mas a sua concentração era tão obsessiva que a dissimulada sequer me viu atrás dela. Puxei seu cabelo com força e a truculência fez com que ela deixasse o aparelho cair. Enrolei seus cabelos em meu braço de forma que a imobilizasse. Ela gritou alto feito um porco sendo abatido. 
- Me deixe ver seus olhos! – exigi, ainda a segurando pelos cabelos — que de tão lisos pareciam óleo escorrendo pelo meu braço —. Ela gritava e tentava se soltar. Joguei-a contra a parede com força, sua cabeça se chocou com a alvenaria e seu corpo quase foi para o chão. A segurei pelo pescoço obrigando-a a me olhar e lá estavam os olhos de ressaca — seus cílios compridos quase camuflavam aquelas bolas cor de avelã — ela parecia tão calma e segura, era como se minhas mãos não estivessem em volta do seu pescoço

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