Travessia

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O homem que nos recebeu no cais tinha olhos de fome, queria devorar a beleza das mulheres. Ádamo tinha um pouco mais de trinta anos, ou seja, uns cinco anos mais velho do que eu, com vasta barba clara e olhos amendoados. Não era feio, a sua feiura vinha de dentro.

Minha mãe me olhou com seriedade, sinalizou levemente a cabeça. Ela aprovaria minhas decisões. Meu pai entregou nossos documentos a Ádamo e apertou a mão do pai do nosso algoz. Sim, nossa intuição não nos deixava dúvida de que enfrentaríamos sofrimentos na nossa jornada.

Nós fomos acomodadas em uma cabine minúscula dentro do navio. E advertidas a sairmos para o convés somente na companhia de Ádamo. Na cabine havia três pequenas janelas lacradas por vidros, nossos baús e uma cama pequena que dividiríamos durante os meses de viagem.

Na primeira noite, Marie delirou febril. Não conseguíamos entender o que ela falava, sabíamos que suas visões a consumiam. Aguardamos por várias semanas até que os sonhos dela pudessem tomar alguma forma que não fossem imagens incompreensíveis e pavor inexplicável. Então, ela acordou sem febre.

— Ele virá numa noite até a nossa cabine — sabíamos que ela falava de Ádamo.

— O que vai acontecer? — Anne não escondia a aflição.

— Ele vai dizer que me tomará como esposa — as lágrimas rolavam em seu rosto — e que eu já pertenço a ele, então já pode fazer o que quiser comigo.

Anne desesperou-se e abraçou Marie. Eu caminhei até a janela, a lua cheia brilhava num céu sem nuvens, nem mesmo aquele vidro grosso e fosco foi capaz de escondê-la. Nós tínhamos poucas alternativas, talvez todas fossem, de alguma maneira, trágicas.

— Devíamos matá-lo. Depois, jogamos o corpo dele no mar — disse Anne.

— Vão descobrir rapidamente, isso se não nos pegarem enquanto agimos — eu disse — Eu vou fazer a poção de apatia. Ele ficará subjugado ao meu desejo.

— É muito arriscado. — respondeu Anne mantendo a feição de pura aflição — Ele pode não ser suscetível. E pior, como fazê-lo tomar a poção? E a validade dela é limitada, teremos que dar outras doses até chegarmos ao Brasil. E o que faremos quando chegarmos lá?

— Amanhã, logo pela manhã, eu estarei com tudo pronto e elaborado. Vocês só terão que seguir minhas instruções — eu lancei o olhar mais confiante possível para elas.

No meu íntimo, eu temia toda uma série de possíveis consequências do plano que tomava forma em minha cabeça. Mas era sensato, organizado e funcionaria enquanto tivéssemos dentro daquele barco. Jamais deixaria que ele violentasse Marie. 

Eu passei a noite em claro, preparando as poções e arquitetando as ações. O espírito de Claire me guiava e me fortalecia. Eu pressentia que transferia as consequências daquele ato totalmente para mim. No entanto, eu era a única de nós capaz de suportar o que viria em algum momento.

A noite chegou e o mar em calmaria relaxou a tensão dos marinheiros há quase dois meses no mar. Começamos a ouvir vozes em alto tom e cantorias nem um pouco respeitosas sobre as mulheres. Ádamo apareceria a qualquer instante.

— Você tem certeza do que está fazendo, Joanne? — perguntou Anne escondida atrás da porta que se abriria a qualquer instante — Ele é um homem ruim, você está escolhendo-o como esposo.

— E se nós fugíssemos quando chegarmos ao Brasil? — sugeriu Marie sentada na cama sozinha.

— Não poderemos fugir. Quando chegarmos ao Brasil, precisamos estar seguras ou seremos perseguidas. Somos mulheres, somos propriedades deles. E, principalmente chamaríamos a atenção do clero lá. — Fiz uma pausa para conter o ódio daquela constatação — Confiem em mim, eu vou alimentar meus feitiços constantemente, ele ficará apático e sob o meu domínio.

Ouvimos barulhos atrás da porta, ele certamente estava embriagado. Quando abriu a porta e mirou seu olhar guloso para Marie, eu acertei sua nuca com um pedaço de pau, enquanto Anne fechava a porta. Então, Anne segurou sua cabeça, Marie apertou suas narinas para que ele abrisse a boca mais facilmente. Eu joguei uma dose de poção para apatia goela abaixo.

Em seguida baforei a poção de enamoramento bem próximo de nós dois. Ele despertaria a qualquer momento ele deveria estar o mais próximo possível de mim, para que se concentrasse apenas nos meus olhos e na minha voz quando despertasse.

Marie e Anne correram para cama. Marie deveria mostrar-se extremamente doente, e Anne, principiando a mesma doença. Isso ajudaria a justificar a repugnância repentina dele por elas, que eram mais jovens e atraentes do que eu.

Ele abriu as pálpebras e fixou seu olhar no meu de imediato. Suas pupilas dilataram rapidamente, eu podia ouvir seu coração batendo mais forte.  A precisão e o desejo com que manipulei e consagrei em ritual aquela poção, tornou-a tão poderosa quanto à força que estava adormecida naquelas pedras e que deveríamos proteger.

Meu SacrifícioOnde histórias criam vida. Descubra agora