A Grande Final. Esse era o momento pelo qual todos esperavam. Não...
Pelo qual Yuuri Katsuki tanto sonhava. Era sua última apresentação, na modalidade livre. Patinaria uma última vez ao som da canção composta para si e apenas para si. Essa música não pertencia a mais ninguém, e mais ninguém tinha a vitalidade para completar aquele programa se não ele mesmo. O programa coreografado por ninguém menos que seu ídolo, o maior patinador de todos, Viktor Nikiforov.
Viktor. Aos 16 anos já era uma estrela da patinação. Aos 27, tem cinco Campeonatos Mundiais, vencedor cinco vezes consecutivas das Finais do Grand Prix. Inúmeros outros campeonatos europeus... Um monstro no gelo. Viktor, como seu nome sugere, nasceu para ser um vitorioso, de fato.
Mas Yuuri... Pobre Yuuri. Ao ver seu ídolo na TV, sentia-se tão distante de seu sonho. Ainda assim, decidiu pela carreira da patinação competitiva, tornando-se um patinador profissional, mas não bom o suficiente para se destacar. Até agora. Todos os olhos do mundo estavam presos nele.
Entretanto, só um par de olhos lhe importava. Dois pares de olhos azuis como um céu depois da chuva, frios como a brisa que varre as nuvens para além do horizonte, mas quentes e intensos como a chama de uma vela. Eram lindos. Eram perfeitos. Olhos que o monitoravam, que decoravam os movimentos fluidos do japonês.
Yuuri respirou. O olhar embaçado, nu; sem óculos ou lentes. Gostava de patinar assim, cego. Desceu as pálpebras. Sabia o programa de cor. Sabia a música de cor. Abriu os olhos novamente e viu o russo, tenso como sempre. Ele está olhando, sim. Ele não vai tirar os olhos de você.
Pôs-se em posição. Respirou fundo.
E a música começa.
A música sobre sua vida. Sobre ninguém menos do que ele mesmo, na verdade. Ela começa nos arpejos do piano. Arpejos solitários, até mesmo meio perdidos. Mas ainda assim, os arpejos continuam. Yuuri eleva suas mãos ao próprio pescoço e deixam-se deslizar por sobre o peito nervoso. Abre os braços e dá início à movimentação.
Seu semblante é fixo. Olhos entreabertos, movimentos fluidos e lentos. Ele está cansado, sozinho, perdido no meio das notas do piano. Ele rodopia no gelo, e se fixa em seu corpo, como se ninguém o observasse. Os arpejos na música iniciam leves variações. Yuuri é rápido e cativa a audiência com a sincronia de seu corpo com a melodia.
Ah, a percussão entra na música junto com os violinos. É a parte em que Viktor entra na vida de Yuuri. Apoiado sobre o parapeito do ringue, Viktor o despia com os olhos, e por debaixo de toda aquela roupa, via um corpo ardendo para se mostrar. Não... contar sua história. Os arpejos continuavam, mas eles estão mais concisos? Eles parecem dançar com o ritmo estabelecido pela percussão. O piano parece mais seguro para se afastar um pouco da melodia central e ir se enfeitando sobre uma base percussiva fixa.
O garoto voava por sobre o gelo como uma garça sobre o espelho d'água de um lago. Por quanto tempo você escondeu essa beleza, Yuuri? Por quanto tempo você afogou essa garça no seu mar de lágrimas? Só você não percebeu o quanto era belo.
O russo o abraçaria sempre que precisasse, o cobriria de beijos nos dias em que a tristeza o embriagaria, seguraria seu rosto entre suas mãos delicadas quando a ansiedade o esmagasse por dentro. Viktor seria para sempre seu porto seguro quando as suas próprias tempestades o ameaçassem devorá-lo. Mas...
E quando Viktor não estivesse ali?
A percussão some e um curto silêncio deixa Yuuri a esquiar sozinho sob a luz dos holofotes. Ele fecha os olhos, encontrando-se imerso no seu mar de solidão novamente. O piano está perdido, devagar. A plateia prende a respiração junto com o patinador, todos lentamente afogando-se no escuro do seu desamparo. A garça afunda, mas sente saudade do céu novamente.
O céu está nublado, o azul não pode ser visto. Mas não significa que o céu não esteja ali. Yuuri nada em direção à superfície e o piano volta a à vida, arpejando novamente. Viktor poderia ser sua muleta, mas nunca poderia ser a força vital de Yuuri. Viktor poderia dar o apoio que fosse, mas se Yuuri não lutasse de volta, tudo aquilo se perderia e ele afundaria novamente. E pra isso, ele deveria vencer sua tempestade para que enfim pudesse merecer o céu novamente.
"Você não é fraco" foi o que o russo disse ao japonês, sentado à praia no Japão. E de fato não era. Ele tem força e vigor, mas não tinha uma base. Viktor o apoiou onde pôde, mas nunca poderia patinar ali no ringue por Yuuri. Aquela, afinal, era a carreira dele, e não de seu técnico.
Ele bate as asas, estende os braços, pega impulso. Abre os olhos, prostra-se diante o Firmamento. Estou aqui. Ele nasce novamente e ressurge das águas e retoma seu vôo. O vento sopra, a percussão retorna e as nuvens vão embora. A apresentação está quase no fim e as pessoas já estão aplaudindo de pé. Algumas com lágrimas. Elas podiam ver a garça voando de novo nos movimentos do garoto que um dia ousou se diminuir perante uma derrota, que ousou achar que valia menos do que o protagonista da história da garça que reaprendeu a voar.
Um último presente aos céus: sua assinatura e sua dedicatória a Viktor; Yuuri juntou suas últimas forças após o cansativo programa, fechou os olhos e sentiu seu corpo voar pelo salão... Num Flip quádruplo. A marca registrada da lenda viva Viktor Nikiforov.
A percussão desaparece enfim e só o piano continua. O mérito, afinal, era todo e somente do piano, na melodia.
Aplausos estrondosos ecoaram no salão. Flores voavam em direção ao garoto. Yuuri estava exausto, mas seus olhos só procuravam seu par à beira do ringue de patinação. Ao encontrá-los, pôs seus pés a deslizar em direção ao técnico, que já o esperava de braços estendidos e-
Lágrimas nos olhos? Viktor nunca chorava durante suas apresentações.
O russo segurou seu aluno com força, ao qual foi-lhe respondido com um abraço igualmente forte, quase desesperado. E um beijo. Forte como o bater de asas da garça, mas completo, complexo. Transbordante.
Amor não é sobre completar um ao outro. Mas é de se preencher com você mesmo e se bastar, até que alguém te transborde. É contemplar-se no seu reflexo no espelho d'água, no gelo, nos olhos de um amante e um amigo e perceber-se infinito.
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O Firmamento
Fanfiction"E pra isso, ele deveria vencer sua tempestade para que enfim pudesse merecer o céu novamente."