Capítulo Único

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A doce melodia podia ser ouvida no corredor deserto. Quem passasse por perto talvez, por um momento, pudesse se considerar em um sonho e até parasse para ouvir um pouco mais da doce música que contaminava o ambiente ao redor. Ali dentro da ampla sala de música se achava uma garota em seus 17 anos, sentada ao piano, os longos cabelos loiros soltos, caindo-lhe por seus ombros. Ela tinha os olhos fechados e um doce sorriso no rosto e, naquele momento, ela era livre, dona de um mundo onde só existia alegria, felicidade e luz. Sim, luz o tempo todo, onde nunca seria noite. Seus dedos deslizavam sobre as teclas como se fizessem parte do próprio piano, seu corpo balançava-se quase imperceptivelmente de acordo com o ritmo e seus pés também seguiam o som, quando não tinham que fazer uso dos pedais. Tocava If I Ain't Got You, de Alicia Keys. Era uma de suas preferidas e a havia memorizado muito recentemente, tendo ela decorado cada nota e fato seu próprio toque à execução.

Após terminar a música, ela se deu conta do quão tarde já seria e que seus pais poderiam estar agora muito preocupados. Levantou-se devagar, deu três passos para a esquerda e tateou por um segundo até achar a bolsa, passou a alça transversalmente sobre seu corpo, remexeu em um dos bolsos e tirou o celular dali de dentro. Ela sempre colocava-o em modo silencioso quando entrava na sala de música, pois não queria que ninguém perturbasse aquele momento que lhe era único e apenas seu.

"5 chamadas não atendidas. Você tem 5 mensagens de voz." - repetiu a voz em uma entonação meio robótica.

- Droga, a mamãe vai me matar.

Rosé se dirigiu até a porta, apressada e, ao colocar a mão na maçaneta, sentiu outra vez aquela sensação esquisita de estar sendo observada. Girou o corpo para trás e esperou quieta. Talvez, concentrando-se mais, pudesse finalmente ouvir melhor e perceber se realmente poderia haver alguém ali.

Nada.

- Devo estar ficando maluca. - Falou e saiu pelo corredor, retirando a bengala da bolsa e desmontando-a, não podia correr o risco de confiar apenas na sua memória espacial para chegar em casa. Lembrou-se de quando haviam deixado algum objeto na rampa de acesso ao primeiro andar e ela acabou tropeçando e caindo no chão, ralando o joelho e parte da mão. Para Rosé, suas mãos eram como um tesouro, ela não podia arriscar machucá-las, de que outra forma iria tocar piano?

Ao chegar em casa, Rosé recebeu as reclamações que esperava, sua mãe sempre se preocupava demais com a filha e vivia dizendo para que ficasse em casa o tempo todo, não queria que ela se aventurasse nem a ir à padaria, pois temia que algo acontecesse no caminho, que um carro e atropelasse ou coisa do tipo. Rosé já estava acostumada com tudo isso, apenas ouvia calada e depois ia ao seu quarto, fechava a porta e ouvia músicas até a hora do jantar.

Rosé se sentia solitária, não era como se não tivesse amigos, na verdade tinha até demais, porém ela sabia que a maioria deles tinha "pena" dela e, muitas vezes, não a chamavam para sair pois sabiam que, com sua presença ali, as coisas seriam mais complicadas. Ela tinha a Lisa, mas a amiga já estava na faculdade e não tinha muito tempo para ela, então Rosé passava agora a maior parte do tempo "livre e longe do piano" lendo, ouvindo músicas ou estudando.

"Tédio, apenas." - Pegava-se falando com frequência.

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Na escola Rosé era sempre "paparicada" pelos alunos e professores que, por algum motivo desconhecido, sentiam-se especiais por terem uma aluna com deficiência visual entre eles, mostravam-se prestativos na frente dos outros, mas quando Rosé realmente estava precisando de ajuda, raramente a conseguia, como quando pediu para a colega repetir uma informação que o professor colocara no quadro e ela pedia apenas uma vez, baixo e displicentemente, pegando a mochila e saindo de sala. Rosé só anotou a metade e informação que se referia a uma amostra de ciências que aconteceria na escola na semana seguinte. Isso fez com que ela perdesse valiosos pontos na apresentação do seu projeto.

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