Rabo de peixe - Conto do livro "Pela estrada afora" - Lucas Dallas

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A culpa é a doença mais maligna que existe. É algo que corrói por dentro, que destrói cada pedacinho da alma até não sobrar nada. E a culpa, quando alimentada, torna-se desespero, e o desespero por si torna-se inconsciente.

Esta não é a história de uma princesa que acaba casando-se com um príncipe encantado e vivendo feliz para sempre num castelo no cume de uma montanha. Tudo isso aconteceu há algum tempo, na época em que os mitos estavam no auge e as pessoas temiam as lendas mais que tudo. Afinal, quando se é privado de interação humana, as pessoas acreditam em qualquer coisa.

Como em todas as histórias, havia uma casa. Nesse caso, uma cabana. Paredes de barro e um telhado feito com folhas e palha. Apesar do reforço na estrutura, a casa continuava frágil. Aguentaria uma ventania ou uma tempestade? Era o que Rapunzel mais temia. Aquele não era o lugar certo para criar uma criança recém-nascida. Mas pela forma como foi feito o parto, em uma cama feita de barro e folhas, não era algo tão ruim assim.

Rapunzel vivia com seu marido e sua filha numa ilha grande e isolada das pessoas ou cidades. De acordo com seu marido, foi preciso. "É o único jeito de sermos puros", era o que ele dizia.

— Não podemos ir para a ilha agora! Estou esperando um filho. O que será dele se partirmos neste momento?

— Eu recebi um sinal dos céus. Chegou a hora de irmos.

— Mas e nossa casa? E sua família? Quem nos ajudará?

— Temos tudo o que precisamos. Um ao outro. Bens materiais podem ficar para trás e enquanto estivermos juntos tudo dará certo. Felizes para sempre.

— Felizes para sempre! — concordou Rapunzel, querendo acreditar naquelas palavras, mas no fundo, temendo.

*

A moça de cabelos longos deveria ter pensado duas vezes antes de concordar com aquelas ideias do homem ruivo. O amor que ela tinha por seu marido era algo tão grande que cegava a ponto de não enxergar as atitudes de um plano de fuga ideia sem sentido.

Rapunzel e seu marido deixaram a cidade. Suas famílias, sua casa, seus empregos, e partiram para a ilha. Um lugar grande e isolado. Apesar de ser seu único lar agora, Rapunzel nunca sentiu vontade de explorar a ilha, e essa vontade diminuía cada vez mais, pois depois de algum tempo o ódio se tornou seu sentimento mais forte. Ódio da ilha e de seu marido.

Os dias passavam e Rapunzel dedicava seu tempo a cuidar de suas duas preciosidades: sua filha e seus cabelos. Eram as únicas coisas que ela amava. Seu cabelo radiante e liso como uma cascata de ouro líquido era a única beleza daquele lugar. E disso Rapunzel não podia abrir mão.

— Desculpe o atraso. — disse o homem ruivo, colocando um javali morto sobre a mesa de madeira que ele mesmo construíra. — Ele correu bem rápido. Consegui pegá-lo com uma armadilha.

Onde havia ido parar? Aquele amor mais forte que tudo? Rapunzel não sabia dizer. Se algum tempo atrás seu marido pedisse que ela pulasse de um penhasco em nome do amor, ela o faria. Mas agora, esfolar um javali, que seria o jantar da noite, lhe causava repulsa, raiva e arrependimento. Afinal, aquela não era a vida que sonhara. Tudo o que mais desejara era viver uma vida confortável e feliz com seu marido e seu bebê. Mas aquilo? Aturar o fanatismo de seu marido e a insistência que ele tinha em dizer que era um escolhido dos céus, dormir com coceiras pelo corpo todo... aquilo estava longe de ser uma vida feliz.

*

Mais uma noite que caía sobre a ilha. Restaram apenas algumas batatas do cozido do animal. O homem ruivo estava deitado na grama de barriga para cima, em sinal de satisfação, o que causava em Rapunzel mais repulsa e nojo.

Rabo de peixe - Lucas DallasOnde histórias criam vida. Descubra agora