N sentia o sangue no fundo da garganta, secando e petrificando suas cordas vocais. Acordada agora, lembrava de nada.
- ... socorro ... - sussurrou em sua língua nativa
O Silêncio lhe respondeu.
- ... me ajude ...
Olhava ao redor e seu coração apenas aumentava as batidas. O tamborilar de sua última canção orquestrava em seu peito. Folhas. Folhas... era um bosque? Seus olhos viraram em si mesmos.
Piscando forte, deu uma breve e engasgada baforada. O foco se perdia nas cores. Via verde, azul escuro, roxo e talvez marrom. Tateava na penumbra. O Silêncio observava.
Respirando fundo e engolindo o sangue coagulado, N jogou todo seu peso nos braços anteriores. Fazia força para se erguer naquele pântano sinestésico.
O toque da lama lhe permite a inflexão, volta a infância, volta a chuva. Olha pra cima chorando e os pingos grossos que caem das copas agregam seu volume dramático às suas próprias lágrimas.
As memórias só lhe dão uma resposta, com isso bate as asas com força... e uma dor lhe percorre toda a espinha. Ahhhhhhhhhh! A dor lhe faz babar na própria bochecha.
Agora de barriga para baixo, levanta lentamente sua cabeça do antebraço que a abrigava. Olha ao redor. Só consegue distinguir as costas de um porco, o animal comendo a dois metros de distância.
A deglutição ruidosa dá a N ânsia de vômito. A vontade culmina no próprio ato e à sua frente é criada uma poça de bile e gordura. Ao seu centro, um pequeno verme anil brilhante e a bolacha de sangue que se prendia à sua garganta.
- Tem alguém aqui?
O porco e ela própria se surpreenderam com as palavras soltas ao vento. Com a cara suja, o porco correu a galope. O Silêncio imperava de novo, ninguém respondia.
Cuidadosamente colocou o pé direito a frente e jogou seu peso naquele joelho. A perna esquerda seguiu o movimento. N levantava-se.
O mundo ainda vibrava e as cores se confundiam. As formas começavam a se concretizar a sua frente e, com uma meia volta, pôde notar a estátua-mãe.
Estava no âmago de sua civilização.
A estátua Janeh perdera o rosto, porém toda sua silhueta se mantivera. Permanecia com a estatura, altivez e asas abertas. Porém o vermelho se destacava contrastantemente do azulado da pedra. Vermelho?
Chovia sangue.
Tremendo e autoconsciente de seu coração, N coloca as mãos no rosto e está encharcado. Olha para a refeição do porco e lá jaz uma carne vestindo uniforme. Vomitaria se ainda pudesse.
O choque de realidade se apresentou com um martini de adrenalina para N, muito mais que a própria dor que sentira antes. Suando frio e com arrepios na espinha, tentou mover delicadamente suas asas e desequilibrou-se para esquerda. Recobra a estabilidade em cima do próprio joelho.
Tateia. Tateia furiosamente suas próprias costas. Se estica e retorce. Sua mão direita só alcança um cotoco em suas costas. Aaaaahhhh, chora por estar aleijada. Suas mãos voltam vermelhas ao rosto distorcido.
Engatinha em direção a estátua. O esforço traz pontadas lancinantes aos seus membros. Suas mãos tremem, mas continua puxando a terra para si... carregando-se até Janeh.
Passa por cima de uniformes azuis, trajes pastéis e roupas verdes... todos vermelhos. Arrasta-se pelos defuntos, prendendo seus estilhaços em suas unhas e roupas. Chora sangue com o esforço.
Abre sua única asa e rema com ela nas poças que outrora tinham nomes e histórias, que agora povoam seus arredores no mar vermelho da homogeneidade.
Chegando a base vinho de Janeh, lê com os seus dedos e memória as seguintes inscrições: Janehshaka, símbolo eterno do amor, futuro e prosperidade. Chora suas últimas lágrimas. Seu rosto coagula os eventos.
Escalando Janeh, N lhe pega pelos braços, olha-lhe no rosto sem individualidade e a abraça, como nunca compartilhara com ninguém. Balbucia o nome da estátua em seu ouvido e soluça. Ao abrir o olho, vê pelos ombros de Janehshaka o Silêncio.
Encarando-a, rubro e vermelho vívido, se aproxima calmamente e flutuando. Sobe na base na estátua e abraça Janeh pelas costas. N sente seu abraço e morre nos braços do amor e do silêncio.