Naquela tarde, uma ideia cravejou o espirito de Ubiratan com tamanha força que por um instante chegou a perder o equilíbrio. Sacudiu a cabeça e pôs-se a correr, deixando de lado as flechas que afiava.
Se algum conhecido o visse correr assim, já sabia que coisa boa não era. Porém, Ubiratan ansiava por aquele momento, pois somente uma ideia assombrosa como aquela era capaz de tira-lo de seu estado involuntário para fazer algo por si. Algo pela memória de seu pai.
Correu uma longa distância sem pausas. Quando a mata começou a desembocar no rio em uma derribada de folhas secas e árvores estreitas, gritou pelos dois jovens que iam descendo. Ambos, Picê e Arurana, fincaram suas lanças na terra fofa enquanto trocavam um olhar confidente.
— Pode falar, Ubiratan. Já estamos ouvindo — disse Arurana. Ao seu lado estava seu irmão mais velho Picê que assim como ele, não estava preocupado em esconder o sorriso zombeteiro.
Ubiratan estava arfando, o peito subindo e descendo. Só falou quando chegou até eles. O céu sobre a floresta estava azul e límpido, caminho livre para o sol lançar seu ardor até as copas da vegetação. Ubiratan apertou os olhos, pois o reflexo do rio o atingiu inesperadamente.
— Meus irmãos, servos de Tupã. É bom que estejam ouvindo mesmo, pois o que irei dizer é feito digno de ser contado por gerações!
— Ele está falando do tabixaba? — perguntou Picê ao irmão, fingindo que Ubiratan não estava ali.
— Ele está falando do tabixaba.
— ...Sobre o novo tabixaba. E também de seus guerreiros Picê e Arurana.
Picê arqueou as sobrancelhas e escorou-se em uma árvore
— Isso soa bem, Mas não vejo como podemos ajudar a alcançar tal feito. Não depois de Macari descer a samaúma com um ninho intacto.
— Ou de Sapaim atravessar o rio com três cestos.
— Ou de Yancy fazer um cocar de fogo. Mesmo que não tenha funcionado.
Ubiratan riu com os demais, porém estava ansioso para contar sua ideia. E quando finalmente contou, Picê e Arurana ficaram sem palavras. Conheciam muito bem Ubiratan, mas aquele tipo de coisa mexia com o intocável. Com as coisas permanentes da natureza que deviam permanecer como eram até o fim.
— E como pretende fazer isso?
— Com a ajuda de vocês.
— Não se pode receber ajuda no desafio. Os netos do tabixaba devem fazer tudo sozinhos — lembrou Picê.
— Não em um caso como esse — alegou. — Se conseguirmos, darei autoridade a vocês e ninguém poderá questionar meus guerreiros.
— É loucura. — Picê balançou a cabeça já sem sorrir. — Um feito digno de semideuses.
— Os mortos podem não gostar da ideia — completou Arurana levantando a lança.
— Os mortos não saberão.
— Ubiratan. — interviu Picê. — É impossível! A resposta é não.
Dada a última palavra, Ubiratan fitou a terra. Os punhos fechados eram um sinal já conhecido de Picê. Assim como no enterro de seu pai, Ubiratan sentia aquela impotência o invadindo outra vez.
— Pegue uma lança, irmão. Vamos pensar em algo — convidou Arurana.
No rio, cada gesto lembrava-os da ideia sucumbida de Ubiratan. Mas ao fita-lo, ambos sabiam que ele ainda não havia desistido.
Picê se aproximou do amigo e tocou-lhe o ombro.
— Deixe isso de lado, Ubiratan. Não permita que seu espirito quebre por mazelas. Seu pai foi grande guerreiro. Ele já descansa em paz... Descanse também.
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Kuei Yasy - Aquela Lua
FantasyKuei Yasy é um conto inspirado no mundo nativo da América do Sul. Uma era perdida, tão distante e ao mesmo tempo, tão próxima de nós. Uma história que visita lendas adormecidas e sentimentos capazes de dominar a mente e o coração. Menção Honrosa no...