III - Arurana

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Se não fosse por Mauari, Picê acordaria desgostoso aquela manhã. Mas surpreendentemente conseguiu juntar forças para encarar a situação de outra forma. Ubiratan sempre foi obstinado, contudo, uma hora sempre dava ouvidos a Picê. Não demoraria muito e teria sua honra de outra forma. Além de tudo, estava prestes a se tornar guerreiro.

Agora que sabia o quanto Mauari o admirava, tinha certeza que não deveria hesitar e se declarar. Será que ela sabia o quanto ele a amava? Na madrugada apenas ela elogiou. Percebia o quanto precisava agir diferente. Não se esconder mais pelos cantos.

Logo que Picê se levantou, saudou seus familiares e foi direto ter com Arurana, que infelizmente não estava bem. O irmão disse que sentia-se doente, sem forças, e que caso não melhorasse milagrosamente, deixaria a apresentação como guerreiro para outro dia.

Toda a família estava orgulhosa de Picê e Arurana, principalmente o pai. Ele estava fazendo novos arcos para eles e contando sua própria versão do rapto do Alain. Versão na qual os dois jovens guerreiros enfrentaram o Agnen por ordem de Homerato, o filho de Cobra Grande.

— É estranho vê-lo contente assim depois de ontem, Picê — resmungou Arurana de olhos fechados. — Seria ainda mais se eu não pudesse adivinhar o por quê.

— Fique bom logo, irmão — Picê afagou o cabelo de Arurana e deixou a oca desconcertado.

Talvez a Mãe do Sono tivesse lhe visitado aquela noite e, lhe dado a ideia do que lhe dizer durante a próxima madrugada. Na qual estaria esperando Mauari diante da Lua para revelar seu amor.

O sol correu rápido até o ápice. Enfeitado da devida forma, Picê e outros guerreiros foram apresentados para a tribo. Pode ver o olhar de admiração em cada um de seus pequenos irmãos. Não somente deles, mas de todos ao seu redor.

Mal percebeu quando foi roubado. Deu-se conta apenas que estava com ela, Mauari. Não importava mais esperar até a noite. Com segurança e firmeza disse tudo a ela. Como a admirava, como a desejava. Que a queria por perto e mais do que isso.

— Não diga mais nada, Picê. Não diga mais nada.

Eles aninharam-se em um abraço e por fim se beijaram. Um turbilhão de sentimentos o envolveu pela primeira vez. Aquele beijo deveria durar para sempre.

Depois de um longo tempo deixou que ela partisse, mas não sem mais juras de amor. Seu corpo inteiro vibrava em estase. Agora era guerreiro. Agora tinha Mauari. Correu à oca para contar tudo a Arurana.

Antes mesmo de entrar pode ouvir o choro das mães. Ouviu também brados, vozes agitadas. Quis negar o que seus olhos o revelaram assim que entrou. Quis acreditar que ele só estava dormindo. Ele Arurana.

Sob a penumbra, Arurana jazia imóvel, sem respirar. Morto.

Todas alegria desapareceu. Viu-se agarrado ao corpo inerte do irmão, lavando-o com suas lágrimas. Pegou-lhe a mão e percebeu que havia uma espinha de peixe. Ele a pegou e depois de muito tempo após conseguirem afastá-lo de Arurana, ainda estava com ela.

O que estava acontecendo? O rosto de Arurana estava sendo coberto com a própria rede. Era mesmo verdade?

O colocaram em posição fetal em sua maloca. Tudo que lhe pertencia foi deixado com ele. Até mesmo o arco que o pai construira durante aquela manhã — inacabado.

O que estava acontecendo? Haviam outros mortos. Era um funeral múltiplo. O que estava acontecendo? Pessoas caiam em meio a dança.

Um lamento de desespero ecoou pela tribo. O tabixaba pediu que se acalmassem e convocou o pajé para interceder aos deuses. E foi nesse momento que Picê percebeu.

Arurana havia deixado uma mensagem.

A espinha em sua mão o fez perceber o colar de Ubiratan. Feitos de espinhas, mas não de um peixe comum. Eram espinhas de Alain.

...Roubar o alimento dos mortos atrai maldição! Grande perigo sobre a aldeia! Ubiratan, agora que mostrou seu feito, devolva o peixe ao rio e logo o Agnen o encontrará. Dessa forma, não haverá punição.

Sem perceber, todo ódi por Ubiratan voltou. E mais poderoso do que antes, pois desta vez ninguém pode o deter quando abriu caminho até o tabixaba que, vendo a verdade no olhar distorcido de Picê, aceitou o golpe em seu rosto — assim como também aceitou todos os outros antes de dominarem Picê.

Gritou por diversas vezes. Contou-lhes a verdade, mas parecia que ninguém era capaz de ouvi-lo. Levaram ele para longe e o amarraram em uma vala. Não importava o quanto gritasse ninguém podia lhe ouvir. Ninguém queria lhe ouvir. Achavam que estava possído por um espírito maligno.

Sua mente estava tão mergulhada em trevas que talvez tivesse se tornado um.

Picê contorceu-se, forçou as cordas freneticamente. Nada acontecia. Só depois de se debater por muito tempo, sentiu as cordas sederem. Com as mãos livres ele forçou as grades de bambu até conseguir passar entre elas. Liberto de sua prisão, ele pegou um pedaço de madeira e avançou em direção a tribo. Tudo que via era o rosto de Ubiratan.

Mas os guerreiros o viram e logo flechas saltaram sobre ele. Picê correu para dentro da mata, fugindo daqueles que um dia foram seus amigos. Só então pensou na gravidade de seu estado. Por que não o escutaram?

Talvez se tivesse agido de outra forma, convenceria todos do erro de Ubiratan. Agora a aldeia caia na maldição e não havia nada que pudesse fazer. Ele era a caracterização do próprio mal. Viu-se perdido na floresta, mal sabia dizer por qual caminho seguiu. Não ouvia mais o som de perseguição, não ouvia mais nada. Lá no céu uma Lua reinava. Era sinistra e entorpecente, diferente da Lua que lhe deu Mauari.

Picê escorou o corpo pesado em uma árvore e sentiu suas forças sendo sugadas. Esvairidas. Imagens desconexas passavam por sua mente.

Até que ouviu alguém se aproximar. E de alguma forma, antes mesmo de ver, já sabia quem era.

Kuei Yasy - Aquela LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora