Primavera

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As narinas abriam e fechavam para receber o odor fétido do humano que se aproximava. Facilmente Meier levaria vantagem, pois além de estar contra o vento, a meio-raposa contava com uma audição apurada que denunciava qualquer caçador. 

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-- Espere! - O mais velho, com o rosto repleto de pelos brancos, ordenou que seu filho e aprendiz aguardasse um momento antes de prosseguirem. Ambos já tinham a proteção da pele e do couro de animais em seus corpos, resultado de anos de caça livre e ilegal. O mais novo, Thomaz, obedeceu. Deitou na relva e fez pose de guerra, segurando o rifle apontado para algum lugar aleatório.

- Vamos nos dividir e andar com cautela até uns cinquenta metros a dentro. Depois fique de tocaia e ouvidos atentos. Eu te encontro em breve. - Seria a primeira vez que Thomaz ficaria sozinho em uma caça.

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Meier sorriu com o canto da boca, mas estava repleta de desejo de vingança. Seus primos, desprovidos do raciocínio humano que os moreaus possuiam, foram quase extintos. Pequenas raposas, durante décadas, enfeitaram cabeças com suas peles macias e belas.

Naquele dia não houveram estratégias para se esconder dos humanos. Muito pelo contrário: ela cruzou os braços e aguardava por eles no centro de uma trilha aberta.

Ela enfim pôde visualizar a frente aquele que procurava por uma raposa qualquer. Fosse fêmea, filhote, macho ou jovem, o caçador atiraria de maneira não tão certeira, mas suficiente para intenções amaldiçoadas aos olhos da Mãe Natureza.

- Hoje não... - Disse Meier para si mesma.

O encontro acontece. Meier cerrou seus olhos de raposa para captar os detalhes. Ele também conseguiu vê-la e a situação fez com que seu coração trabalhasse mais rápido. Ela ajustou suas orelhas e notou que o caçador era jovem, pois mal evitava pisar numa folha seca. Ele se aproximaria ou atiraria de longe?

Meier sabia que ele não atiraria, pois nunca em sua breve vida ele havia visto uma meio-raposa.

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- Que diabos é isso? - Thomaz nem sabia o que pensar. Julgou ser um jovem fantasiado, mas desistiu da ideia pois estavam longe demais da vila mais próxima. Então aproximou-se cada vez mais com passos curtos. Fechou um dos olhos e mirou na cabeça. Como um bom caçador, seria melhor atirar primeiro e saber o que era depois.

Efetuado o disparo. O cheiro de pólvora subia no ar e lentamente seu corpo voltava para sua posição normal. De acordo com o protocolo era o momento de se aproximar do animal abatido, embora o jovem acreditasse que aquilo era um homem que queria distrai-lo. Um guarda florestal, talvez.

Ao chegar no local da caça deixou os pensamentos de lado, pois constatou que não havia acertado nada além de uma árvore qualquer em algum ponto mais a frente dali.

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Para Meier, era patético ver aquele ser ansioso e desesperado. Ele ainda piscava antes de atirar e esse milésimo de segundo proporcionou a esquiva da Moreau. "Chega de brincadeira".

A raposa que estava em cima de uma árvore saltou sobre o humano com ambas as pernas acima de seus ombros, fazendo-o cair bruscamente no chão. Meier manteve as plantas dos pés planas na terra enquanto o jovem gemia e se contorcia de dor.

Duas botas, uma arma
é um caçador

Segue em frente com seu Karma
pele, carne e suor

Ajusta tua mira, nem olha pra cima
Cá estou
Era um caçador

O poema foi cantado por Meier com fervor, com vida, que deixaria qualquer bardo com inveja.

- Eu queria muito ouvi-lo. Mas os outros da minha raça tem nojo da tua língua. Eu já os desobedeci uma vez quando decidi caçar os caçadores, portanto, não vou desapontá-los outra vez ao deixar que abra tua boca imunda nessa terra sagrada.

Ela puxa os cabelos cumpridos do homem pra trás.

- Me dê sua língua se quiser viver. - Meier usou a outra mão para encostar tua adaga no pescoço do caçador. Com gemidos que suplicavam por misericórdia, Thomaz teve sua língua cortada para não morrer antes dos vinte.

Como que por brincadeira, ele foi solto por uns instantes e ao notar que sua arma foi tomada decidiu correr desesperadamente, enquanto o sangue que caia de sua boca escorria até seu peito. Decisão pouco inteligente, já que, para cada direção que ele seguia, era um golpe diferente que levava. Até que se rendeu. Deixou seu corpo cair, como uma presa indefesa que descobriu por instinto que serviria de alimento para um animal de nível superior da cadeia alimentar. De costas na terra, seus olhos que ardiam por conta do suor ainda conseguia distinguir a copa das árvores que agora eram espectadoras de uma cena inédita.

Meier se deitou sobre Thomaz. Em outra circunstância seria sexy.
- Quem compra as peles? - Ela se aproximou do ouvido do homem e ele sentiu o cheiro animal da meio-raposa. Ela sussurrou então: - Esqueci que cortei tua língua e comi.  - Retomou a posição inicial em cima da presa. - Mas confio em você. PARA QUEM VOCÊ VENDIA AS PELES? - Com a adaga em mão, ela deu a entender que o mataria somente depois de tortura-lo. - Eu vou te contar. Durante décadas eu fui acordada por pequenas raposas que lambiam meu nariz. Elas eram filhotes e seus pais saiam para caçar roedores e tudo estava equilibrado. Nos nosso rituais de adoração aos espíritos da floresta, as raposas estavam sempre presentes. Eu sou meio-raposa. É minha raça! Estou mais acostumada com elas do que com as árvores que nos rodeiam. Mas hoje. Exatamente hoje. Eu não acordei com o afago de nenhum filhote e eu sabia o motivo. - Ficou em silêncio por um instante, observando o humano e tentando entender como um ser pode causar tanto estrago, tanto desequilíbrio. - Você deve ter seus motivos. Se caçam é porque querem as peles de raposa. Só me diga quem compra as peles e eu te solto. - Enquanto aguardava a resposta, o velho e pai de Thomaz, surgiu atrás da moreau. Ele encostou seu rifle na parte de trás da cabeça de Meier e disparou sem que ela tivesse tempo de usar seus reflexos.

- Christian Dior. As peles são para Christian Dior. - Disse o mais experiente. - Você queria tanto saber mas nunca vai ouvir. Pelo menos levarei sua pele pra ele. Como você é uma aberração, valerá mais do que o de praxe.

O velho ergueu o corpo do filho e se preparava para leva-lo pra casa e receber os devidos cuidados. Mas ambos caçadores foram surpreendidos por cerca de quinze guerreiros meio-raposa, meio-humano, assim como era Meier. Parecia que eles estavam ali o tempo todo, embora tenham se revelado tarde demais.

                             
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O estilista colocou a caixa que havia recebido em cima de uma mesa. Ele ainda usava o roupão vinho que costumava vestir após acordar despido. Seu acompanhante lhe serviu um chá de maça e Christian só bebericou depois de se deliciar com o aroma. - Obrigado Philipe. Só você pra me dar esse mimo. - Eles se beijaram e Christian ficou sozinho novamente. Isso não lhe impedia de falar sozinho, pois era seu costume. - Vamos ver... Só quero três para a exposição e os outros serão presentes. Só recebe quem dá.

Ele abriu a caixa pesada que fora endereçada e dedicada a ele com os dizeres: Para Christian Dior. Ao abrir, Dior ficou surpreso e levou a mão ao peito como por reflexo involuntário. Dentro da caixa, duas cabeças de caçadores em decomposição. O horror da cena ofuscou o aroma do chá de maça e a beleza da natureza morta que enchia as paredes com cabeças de animais empalados e o chão de peles de animais, inclusive de raposas.

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⏰ Última atualização: Aug 26, 2017 ⏰

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