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Sentou na calçada,e olhou para o céu:algumas nuvens esparsas encobriam o sol do inverno cinza.Ele pôde ver o agressor correr e dobrar à direita,na avenida Palestina.A silhueta magra corria de forma desesperada,até estabanada.Era um garoto,que provavelmente não tinha dezoito anos,mas um desses que em breve morreriam de forma trágica e violento pela mão de um garoto.A faca estava no chão,era uma Tramontina com cabo de madeira,ótima para cortar pão.E ele achou engraçado como o sangue não ficou no objeto que o perfurou -apenas um pouco,na serra e no cabo -,mas nele,para lembrar quem era o verdadeiro ferido,quem precisava de socorro.A faca precisava apenas de água e de um pano;Renê,de agentes químicos e intervenção humana.Levar uma facada é uma experiência de extrema violência,pois não envolve apenas vontade e alguns músculos,como um tiro,mas sim uma dança,um arremesso do corpo e o controle da profundidade do corte e do estrago pela mão do agressor.Se o agredido assistisse a toda a cena em câmera lenta,nunca mais dormiria.
Uma senhora gritava sem parar,a plenos pulmões:
"Socorro,socorro,mataram um!Mataram um!"
E logo ele estava rodeado de pessoas,uma ciranda de vozes.Vieram as perguntas,as conversas,de homens,de mulheres e de crianças.
"Você está bem?"
"Consegue se levantar?"
"Tio,tá tudo bem,tio?"
"Posso ver,opa,acho que foi fundo."
"Consegue falar,senhor?"
"Onde você mora?"
"Quer que eu avise alguém?"
"Já chamei uma ambulância."
"Acho que vai demorar."
"Peraí,me ajudem aqui,eu levo no meu carro,não vou deixar alguém morrer aqui,na frente da minha casa..."
Ele não queria falar,não queria responder,não queria nada.A dor maior não era a do corte,era outra,e sempre era resumida como tristeza,mas raramente a palavra cobria o sentimento.Foi de Chevette para o hospital,no banco do de trás,praticamente enrolado num lençol e num cobertor velho,para não sujar o carro.E ardia,e estava começando a latejar,e ele não podia deitar e nem sentar,tinha de ficar num meio-termo,para não doer mais.No pronto-socorro ainda teve que aguardar um pouco,estava lotado e tinha gente pior do que ele,sempre tem.Uns motoqueiros sem as pernas,um desavisado que caiu do telhado de casa ou alguém que tomou uns tiros.A primeira palavra que pronunciou desde a facada foi um "ai",quando o colocaram desajeitadamente na maca.O bom cidadão que o levou para o hospital ficou com sua carteira,para preencher a ficha do hospital.E,enquanto via o teto do corredor passando,lembrou do louva-deus.Renê não tinha boas lembranças do hospital,não mesmo.Quando tinha dez anos,ele e seus amigos passavam tardes brincando de chute a lata.A brincadeira era simples,alguém ficava perto de uma lata,tapava os olhos e contava até cinqüenta,enquanto todos se escondiam.Quando terminava de contar,o da lata tinha que achar os escondidos,e eles deveriam ficar próximos da lata, " presos".Mas,nessa procura,o caçador não podia se afastar muito da lata,e todos os "presos estariam livres,e o caçador tinha que repor a lata e voltar a procurar todos novamente.Era uma espécie de joão-bobo,em que o caçador passava várias rodadas tentando "prender" todos para ir para o outro lado,para a parte mais divertida.E Renê sempre começava como caçador,pois era o mais pobre da turma,e também o caçula.Numa de suas caçadas,Renê se distraiu e não viu que Rodrigo,o mais forte e violento da turma,se aproximava rapidamente.O caçador correu para encostar em Rodrigo antes que ele chutasse a lata,mas o que realmente aconteceu foi que Rodrigo chutou a lata em cima de Renê,que conseguiu ainda proteger o rosto com o antebraço.A lata,vazia e semiaberta,fez um pequeno corte no cotovelo de Renê.Dois dias depois,ele não podia abrir e fechar o braço que cotovelo espirrava pus,ininterruptamente;e,quando começou a vomitar e sentir calafrios,sua mãe pegou um ônibus e o levou para o Hospital Santa Inês. "Um tétano local em clara evolução para um tétano generalizado",ou algo assim,disse o médico.Ficou vários dias internado e passou algumas noites num quarto com desconhecido.Nunca esqueceu da noite em que chamara a enfermeira e ela não atendia,e os outros pacientes o mandavam calar a boca.Algum paciente até lhe jogou uma revista no rosto.Havia um imenso louva-deus verde no seu quarto,exatamente sobre a sua cama,no teto.E ele era o menos pior do quarto,mas estava no soro,e fraco,não conseguiria espantar o inseto.E alguém lhe dissera que o louva-deus era altamente venenoso,provavelmente o Marcelo,o metido a sabichão e cascateiro da turma.Foi a primeira noite em que ele não dormiu na vida,com medo do inseto inofensivo.

As Fantasias EletivasOnde histórias criam vida. Descubra agora