Como matamos nossos hamsters

29 4 10
                                    

Esta é a história. Foi numa tarde de calor extravagante, num desses verões estragados pela destruição do planeta. Deixamos a gaiola na sacada o dia todo e eles foram torrados pelo sol. Eu fui o primeiro a chegar em casa e, depois de preparar um sanduíche, jogar videogame e ler um pouco, tomei consciência de um bilhete sobre o móvel do computador. Tarefa do dia, espertinho: lavar a louça da janta e do almoço e recolher as samambaias. As samambaias estavam lá, secas, há três meses. Que mancada. E lá estava a gaiola, fritando naquele infernal pedaço de laje que era nossa sacada.

Mas ok, vamos começar por essa coisa de ter um apartamento, ir morar junto. Também não se trata aqui de fazer uma crônica sobre as tragédias da vida doméstica.

A gaiola tinha um daqueles tetos abobadados de acrílico, que funcionava mais ou menos como uma estufa, e que serviu para dar o efeito cretinamente dramático ao acidente. Apolo Esminteu, o mais gordo, encontrava-se estirado contra a rodinha de girar, plácido e impassível, com os olhinhos ternamente fechados, feito um bebê que já aprontou tudo que podia. Ele tinha o costume de dormir assim, embora eu devesse ter estranhado que uma de suas patinhas estivesse meio virada para um lado que não devia. Um maneirismo de pequenos roedores, pensei.

Procurei em volta e não encontrei Ícaro, o menorzinho, imaginando que tivesse fugido outra vez. Na ocasião anterior, tivemos que forrar o apartamento com sementes de girassol e montar guarda na frente dos roupeiros. Era algo que feria meu direito à procrastinação. Dei uma olhada mais atenta e o encontrei sobre a escadinha que liga os dois andares da gaiola, ele às vezes ficava bem ali, porque o plástico no verão é menos quente que a serragem. Ícaro era inteligente, civilizado e bondoso, e às vezes eu imaginava ele dizendo que era preciso se preparar para uma crise, oh, sim!, enquanto estocava ração nas bochechas, ou então recomendando a si mesmo: não se aproxime demais do sol, Ícaro, ou poderá se queimar.

Fiquei perscrutando demoradamente para a gaiola. Juro que, num primeiro momento, não imaginei que estivessem mortos. Olhando melhor, percebi Ícaro com os olhos esbugalhados e a linguinha para fora, como um gambá que não conseguisse cruzar a rodovia. Enfiei o dedo pelas gradezinhas e o cutuquei de leve, apenas para concluir que jazia ali perfeitamente consumado. Abri a portinhola e mexi com mais força, mas ele continuava tão inerte quanto uma bolota de pão de ló. Fui tomado pelo desespero bestial e só pensava meu deus, puta que pariu, o que foi que nós fizemos?

Minha namorada tinha essa espécie de transtorno compulsivo por recolher animais da rua, ou adquiri-los naquelas pecuárias com montes de gaiolas expostas na calçada. Um tipo de consumismo comum, só que com bichos. Seus excessos transformaram nosso minúsculo apartamento num grande viveiro, cuja coleção contou em outros tempos com uma gata paranoica, um filhote de chow chow, canários belgas e um periquito ancião. Era até natural que meu primeiro impulso fosse esconder os cadáveres, eu tinha dado os bichinhos de presente no Dia dos Namorados. Ela jamais nos perdoaria por termos esquecido deles sapecando do lado de fora.

Quanto mais eu demorava para encarar o fato, mais eu projetava a horrorosa cena diante dos meus olhos, das pobres criaturinhas sentindo suas vidas se esvaindo aos poucos.

Enrolei-os num saco plástico e os levei para fora. Peguei o telefone e enviei um áudio.

Aconteceu uma coisa, eu disse.

Os bebês! minha namorada mandou de volta, exibindo um amável pressentimento materno.

São só dois ratinhos, eu meio que falei, pouco antes de ficar em silêncio. Ela começou a chorar e partiu meu coração.

Partiu meu coração mais porque havia esse tipo de resignação na sua voz, que dizia algo como que isso já era esperado de nós. Porque todos os dias nós matamos nossos hamsters, menos por maldade do que por essa nossa inescrupulosa indiferença humana.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Jun 24, 2017 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

O Jardim das HespéridesWhere stories live. Discover now