CONTOS DE SATURNO, O VAMPIRO. 1590 - A NOITE DE SUA ALMA

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            Essa morte, seja qual for a sua origem, parece causar visões terríveis daqueles que testemunharam seu rosto. De repente, o homem morto se levanta da sepultura e preocupa seu círculo familiar, agitação traz dor, dor traz melancolia, melancolia gera sustos na noite e sonhos torturantes.

Michaël Ranft - De Masticatione Mortuorum in Tumulis, 1728.

A tarde na floresta atlântica é quente e úmida e Saturno caça. Alisa seu colar de dente de onça, pedindo boa sorte a Tupã, pois sabe que a hora não é boa, mas aquele fora um dia ruim de caça e não é um velho para viver de frutas, mel e bondade dos mais novos.

Precisa voltar com algo.
Pensa em abater um bugio, apesar de preferir uma capivara que é maior e alimenta a tribo por umas duas luas.
- "Além de trazer elogios ao caçador. " – pensa, sorrindo.
Olha para o céu além da copa das árvores que começava a se tingir de tons arroxeados.
- Será o bugio - conclui ele.
Quando retesa o arco, já com o mais gordo macaco da árvore na sua mira ouve um ruído furtivo. É um som estranhamente familiar de passos humanos. O índio para e escuta a floresta por alguns momentos e quando pensa que havia imaginado, ouve o som novamente e mais próximo agora.
Virando o rosto rapidamente, percebe um vulto se aproximando em alta velocidade. Lança a flecha, atingindo certeiramente o que pensa ser uma onça, na cabeça, mas um instante depois de ser derrubado vê que seu atacante é um ser humano. O olho direito sumiu, perfurado pela flecha, cuja ponta sai por detrás da cabeça junto aos cabelos esvoaçantes do falecido.
Ele tem traços egípcios e veste uma roupa opulenta, costurada com fios de ouro, mas o índio não sabe disso, já entrou em contato com os peros antes, mas nenhum deles se aprece com aquilo.
Saturno tenta se levantar, mas com a mão esquerda o homem atinge seu peito com um golpe tão poderoso que o índio quase desmaia. O rosto do caraíba está totalmente desumano, chegando a ser monstruoso e antes que possa se defender do estranho ser, ele é imobilizado por mãos que parecem feitas de pedra. O jovem índio tem o seu pescoço mordido e o sangue sugado vorazmente.
Ele está roubando sua alma (assim ele acredita)!
E tudo acontece muito rápido depois disso, por reflexo, o índio tira da cintura uma faca de ferro benzido por um jesuíta, implora força a Tupã, seu deus do sol e esfaqueia o ser.
Não pela força do golpe, mas pela sua fé em Tupã, mas o golpe surte efeito e o estranho monstro urra de dor, empurrando o guerreiro e quebrando seu colar de dentes de onça, conquistado em uma encarniçada batalha contra o enorme felino.

A ferida nas costas do ser sombrio escorre sangue e ele se afasta um pouco de maneira que
Saturno pôde ver a verdadeira natureza do homem, monstruosa e bestial.

- Anhangá! – pensa erroneamente o índio, associando ao demônio a sua cultura.

O humano finge estar inconsciente na esperança de que a criatura se vá, mas perde a esperança ao ouvir seus passos arrastados voltando e um arrepio o assalta quando sentiu a criatura sobre si, com seu hálito de carne podre, como nunca sentiu antes. A mão do monstro toca seu braço e no instante seguinte não está mais lá, foi decepada pela faca afiada de Saturno e o horripilante ser grita de surpresa, segurando o coto do braço e antes que possa reagir, o corajoso guerreiro decepa sua cabeça. Com um baque surdo o membro vem ao chão, a agonia estampada na face.

Enquanto a manhã se aproximava velozmente, Saturno está quase desfalecendo, seu pescoço lateja onde as artérias foram rompidas e sua visão se nubla pela falta do sangue que perdeu. O índio sente que vai morrer e resolve tomar de volta sua alma, agacha aos pés do morto, enfia a boca no pescoço cortado e suga o sangue negro em longos goles.
Pensa assim ter recuperado sua alma.

Enganou-se, pois acaba de perdê-la para sempre.

A fraqueza toma conta de seu corpo e ele cai. Saturno está morrendo.

O dia chega afinal torturando-o com agulhadas invisíveis por todo o corpo, e ele pensa que está delirando ao ver seu inimigo morto desfazer-se em pó ao contato com a luz do sol e após agonizar por horas, Saturno fecha os olhos. Está morto.

Três noites após ser mordido renasce como um vampiro, depois de um tempo que lhe pareceu uma eternidade seus olhos se abrem e para ele tudo parece estranhamente igual, porém diferente. Apesar da escuridão profunda enxerga como se fosse dia, entretanto sente a proximidade do amanhecer e sua pele se arrepia com a possibilidade do sol lhe alcançar. Escuta o murmúrio das arvores que se perguntam que estranha criatura é aquela que mesmo após morto pensa e se move?

Um lobo-guará uiva para Jaci, o índio sabe como o animal se sente, tenta apanhar a faca entre a folhagem, mas esta queima sua carne. Agarra então seu bem mais precioso: o colar de dente de onça.

Um dos dentes de onça fica no chão mas não há mais tempo de recolher. Saturno começa a correr com o sol em seu encalço e logo atinge uma velocidade tamanha, que nem uma flecha pode alcançá-lo. A floresta passa como um borrão a sua frente.

Infelizmente para ele, o sol é mais rápido que uma flecha, e quando está para ser alcançado vê um buraco, imediatamente, salta enfiando meio corpo, cavando rapidamente, foi penetrando cada vez mais fundo rumo à relaxante escuridão. Após um sono sem sonhos, acorda.

Faminto.

Sentindo a proximidade da noite ele sai lentamente de seu esconderijo, para fora, onde o frio da noite o espera. Mas a noite não está fria... Frio está Saturno, seu corpo, sua alma.

Corre pela floresta, livre como um espírito da noite e quando a Fome veio, a saciou com um animal, sentindo o gosto da carne, insípida, mas o sangue... Este tem um sabor incrível! Maravilhoso! E logo o índio o bebe exclusivamente. O tempo passa, e ele para de matar indiscriminadamente qualquer animal, dando preferência a ceifar a vida dos mais velhos e doentes, que vinham a ele por instinto, pedindo para morrer.

E quando não podem chegar até ele, clamam por sua visita à qual ele nunca faltava sempre pronto a lhes aliviar do fardo da vida. Sua integração com a natureza é total e em pouco mais de um século teve poucos contatos com humanos, sendo que estes encontros viraram relatos e posteriormente lendas, sobre um ser que vivia nas entranhas da selva, montado em um imenso porco do mato. Foi chamado de Curupira e muitos outros nomes através de sua imortalidade.

Justiceiro da selva, não deixa que os caçadores,índios ou não, escapem impunes quando matam apenas por prazer e cinquenta anosapós ter sido transformado,um fato o tira do rumo que sua não-vida leva até então.


CONTINUA... 

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