Capítulo Único

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Aquela noite fazia frio na minha casa, e a velha sensação de vazio em minha barriga voltava a me incomodar. De olhos fechados vi na minha frente à imagem do leite branco e morno dentro da minha mamadeira flutuando no ar e estiquei os braços tentando agarrá-la. Meus dedinhos estavam prestes a tocar o objeto de meu desejo quando ele sumiu, repentinamente. Por causa de uma contração no estomago e um sonoro barulho de vácuo que parecia vir de dentro de mim, tomei um susto e abri os olhos apenas para constatar que estava sozinho em meu cercadinho. Não gostava de ficar sozinho.

Rapidamente tomei fôlego enquanto meus olhos se enchiam de lágrimas, e chamei em alto e bom som por companhia.

- Uaaaaahhh!

Percebi que o chamado, como de costume, causara certo movimento na cama de meus pais, ao lado, e continuei a pedir que viessem ficar comigo. Meu estomago ainda estava apertado e me incomodando. Ouvi um sussurro que reconheci ser da mamãe.

- É a sua vez, Tiago...

Papai se levantou devagar, coçando os olhos e esticando os braços enquanto ainda se sentava na cama. Chamei mais alto dessa vez, as lágrimas quentes escorrendo pela minha bochecha.

- Buaaahh! Buaahh! Uããã!

- Shh... Shh... - fez papai, colocando o rosto por entre as cortinas do cercado em que eu dormia algumas noites. Eu gostava de seu rosto firme e seus cabelos bagunçados e volumosos. Os olhos pareciam estar fechados, como sempre estavam quando estava assim, tudo escuro, mas ele passou as grandes mãos pelo meu torso e me levantou, fazendo-me pousar sobre seu ombro e dando leve sacudidas, enquanto beijava as costas de minha cabeça.

- Não chore, pequeno Harry. Papai está aqui.

Em seu colo eu me sentia mais confortável. Apoiei minha cabeça junto à dele e esperei que o incômodo em minha barriga passasse, mas logo vi que não passaria. Nunca passava, a não ser quando tomava o leite quente que eu sabia me esperar em algum lugar da casa. Comecei a pedir que me ajudasse, mas ele parecia não entender.

- Buaah, buaah - dessa vez eu não gritava alto, mas gemia teimosamente perto dos seus ouvidos. As lágrimas começaram a cair novamente.

- Lilian, ele ainda está chorando... - disse papai, em uma mistura de forte sono e leve aflição.

- Deve ser fome, Tiago... - respondeu mamãe, sem abrir os olhos.

Um pouco mais quieto, observei-o caminhar pelo quarto até uma mesinha de madeira ao lado de sua enorme cama e tatear no escuro por alguma coisa enquanto sussurrava perto de meu ouvido.

- Você está com fome, está? Quer sua mamadeira?

Isso! Era exatamente isso que eu queria. Confirmei que sim balançando suavemente a cabeça e tentando imitar os sons que saiam de sua boca.

- Mamá...

Papai pareceu gostar e deu um leve sorriso. Ajeitando seu torso ele levantou nas mãos aquele pedaço de madeira com o qual eu gostava tanto de brincar, mas quando tentei pegá-lo ele o afastou, me contrariando. Logo em seguida, porém, apontou para a porta e disse:

-Accio mamadeira!

Ouvi um barulho e virei o rosto apenas para ver o que eu tanto queria surgir voando na nossa direção, passando pela porta entreaberta. Ri um riso choroso. Adorava quando papai e mamãe faziam as coisas voar. Simplesmente adorava. Ele pegou a mamadeira no ar, ainda sorrindo, e a colocou entre as minhas mãos esticadas. A sensação de vazio no estomago me incomodava cada vez mais, mas não seria assim por muito tempo. Botei o bico entre meus lábios e comecei a beber com velocidade o liquido morno que descia para esquentar o meu corpo.

O Dia da CicatrizOnde histórias criam vida. Descubra agora