• Na relva de outono

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Zaina, 1948

A garota tinha lindos cabelos louros platinados. Sedosos, lisos, como nunca se virá antes, que iam até a altura do queixo. Seus olhos eram de um azul claro admirável. Sua pele pálida, ás vezes parecia brilhar ao sol. Ela era uma criança linda que corria colina à cima. Tinha que correr, ela precisava. Seus cabelos curtos balançavam em sua cabeça freneticamente. A grama começava a ficar cada vez mais alta enquanto ela se afastava. O sol sobre sua cabeça, vez ou outra desaparecia atrás de imensas nuvens brancas acinzentadas e o vento não estava forte. Aliás estava do jeitinho que ela adorava, uma brisa suave. Ela continuou a correr. Correu alguns metros até finalmente parar para pegar algum ar em seus pulmões. Sentiu as pernas queimarem. Olhou para trás e viu a casinha agora distante, no meio de uma vastidão de grama cor verde viva. A casa não era tão grande, e dali de cima parecia minúscula. Mas continuava linda. Uma linda casa de dois andares, que parecia ter saído diretamente de um conto de fadas. Era o que ela dizia a si mesma sempre, quando saia e via a casa de longe, como agora. A casa era feita de madeira, com os detalhes das vigas da varanda da frente talhadas a mão pelo pai. Seu pai. O coração dela apertou ao pensar no pai. Quanto tempo será que leva para o fogo dominar o ser? Ela se pôs imediatamente a correr de novo.

Subindo cada vez mais a colina e deixando sua casa para trás, ela finalmente chegou aos limites da densa floresta que cercava todo o território de sua casa. Sentiu o ar frio vindo de dentro, soprando, contornando por entre os troncos e chegando em sua pele que se arrepiava. Mas dessa vez o arrepio veio antes. Dessa vez o arrepio veio com um profundo medo que beirava a pânico, quem sabe desespero. Seu pai. A garota passou a mão nos curtos cabelos, pensando. Era melhor voltar, ajudar sua mãe enquanto havia tempo. Talvez ela merecesse ajuda. Sua mãe... Ela fechou os olhos respirando fundo. Alisou o shorts marrom que usava, tentando controlar em partes o nervosismo, e voltou a andar depressa. Queria olhar a casa mais uma vez. Mas não olhou. Continuou rápida, fixa na floresta.

O caminho ao passar pelas árvores era dificultoso pelas raízes sobressaltadas do chão. A floresta dava a garota uma imagem entre focos escuros e pontos de claridade. A copa das árvores cheias e bem fechadas tornava o lugar um pouco mais escuro e fresco, mas parecia que o sol invadia, violava o escuro, o frio, passava entra as árvores e tomava um lugar para si. Era particularmente bonito para ela. Sempre foi. Durante sua vida toda. Ela sabia onde ir, onde pisar, tinha um plano em sua cabeça. Iria até a macieira depois do lago, então voltaria para casa e esperaria tudo acabar. Só que quando acabasse, não teria mais nada. Nunca tem mais nada. Seu pai e sua mãe não sairiam das cinzas. Um arrepio forte a fez tremer, ela logo voltou a caminhar agora concentrada na macieira.

Galhos menores e mais frágeis se partiam na sola dos seus pés enquanto ela caminhava. Incestos, grilos provavelmente, faziam um barulho leve. Dava para ouvir uma variação de pássaros aqui e ali, dando vida a cada árvore da floresta. Um pássaro de peito avermelhado fez um voo baixo chamando a atenção da garota. Analisando melhor as penas brancas do bicho, que pousou em uma árvore torta e escura, uma memória tomou conta de todo seu interior. Dois anos antes, ela encontrou mais ou menos a cinco metros de sua casa um passarinho igual aquele. Sua asa machucada impossibilitava ele de voar, até mesmo de se mexer. Quando correu com o pobre bichinho nas mãos para casa, ela lembrou do pai fazendo cara feia. Junto com sua mãe, as duas passaram dois longos meses cuidando do animal. Finn, a garota o batizou uma noite quando colocou ele em um ninho na janela do lado de fora da casa. Dois longos meses depois, numa manhã, ele simplesmente sumiu. Ele se curou e voltou pra casa, ela pensou, com tristeza lá no fundo do seu ser. E agora vendo o pássaro ali, no galho mais alto daquela árvore torta e escura, ela não se conteve em pensar: É você Finn? Será que é você?

Isso de fato não importava. Não agora. Ela tinha um caminho a seguir, precisava chegar ao lago. Não poderia parar agora. Se despediu de Finn mentalmente e voltou a caminhar depressa. Desceu e subiu alguns morros. Alguns mais inclinados que outros, mas ela já sabia. Passou por aqueles lugares a vida toda. Menos de dez minutos depois ela chegou em uma estradinha de terra, formada pelo tempo, com canteiros enormes cheios de flores lindas em cada lado.

Sua mãe, ela lembrou, adorava esse lugar. Era seu favorito. Ela dizia que quando o sol se punha e a luz alaranjada cobria todas as flores, aquilo era, sem questionamentos, a coisa mais bonita que existia. Sua mãe. Lindas flores roxas chamaram a atenção da garota. Sua mãe colheu iguais semana passada. Havia meia dúzia delas num jarro de barro que seu pai fez. Dizia sua mãe que era um presente dele para ela. Uma história muito bonita para um jarro, mas tão distante para ser realidade. Seu pai não era de dar presentes. Seu pai. Ela continuou caminhando, deixou as flores, o jarro, o pôr do sol e o presente, tudo para trás. O lago não estava muito longe agora. Mais alguns passos e ela estaria lá. Ela estava lá.

O lago se mostrava calmo. A garota chegou perto, até a margem. Era grande, mas nem tanto. A garota olhou o próprio reflexo na água. Tinha olheiras evidentes, não dormirá fazia tempo. E pensar naquilo trouxe cansaço repentino. Seu cabelo claro e curto estava bagunçado pelo vento. E em um conjunto, ela parecia sem vida. Não tinha expressão. Não sabia o que fazer. Pensou em sua mãe, seu pai e no que estava fazendo. Passou os dedos sobre a água gelada, isso a despertou. Sua imagem refletida se distorceu e desapareceu no meio das ondas que se formaram. Era melhor assim. Ela não queria se ver.

As tardes mais quentes de sua vida ela tinha passado aqui, dentro da água. Se refrescando. A sensação era ótima, ela se lembrou. Mas já estava se distanciando do lago quando isso lhe ocorreu a memória. Ela começou a subir um morro, passando por entre as árvores. Faltava pouco agora. Mais alguns passos e lá estava ela. A macieira favorita de sua mãe. Tinhas as maçãs mais bonitas e gostosas que já tinha visto ou provado. Sua mãe fazia o melhor doce de maçã do mundo. Ela puxou de um galho menor, uma maçã vermelho vivo, enorme e suculenta. Arrancou do galho. Quanto tempo será que o fogo leva para dominar o ser? Ela assistiria aquele fim comendo uma deliciosa maçã. Só que teria que correr.

Ela se pôs a correr. Não tão desesperada, daria tempo suficiente, então ela só correu mesmo. Segurando forte a maçã na mão ela fez todo o caminho de volta. Ela desceu o morro e passou pelo lago. Entrou na floresta de novo e continuou correndo. Passou pelo canteiro lindo de flores e continuou a regressar. Não só no exterior, mas em seu interior também. Regressando. Ela voltou a floresta e voltando e voltando passou pela árvore torta. Logo já estava de volta onde tinha começado. E caminhando sobre a relva, ela ia voltado pra casa. Só que sua casa não era mais sua casa. Sua casa, sua bela casa de contos de fadas, sua casa de madeira agora era uma fogueira gigante.

O calor alcançou a garota. Ela parou e se sentou. A casa pegava fogo. As chamas subiam altas e dançavam, queimando. E lentamente a casa foi sendo destruída. Ah, então esse é o tempo que leva para o fogo dominar o ser! A garota sentou na relva. Seus olhos prestavam bastante atenção na sua casa em chamas. Seu coração batia forte. O calor trazia arrepios ao seu corpo. Sua mãe. Seu pai. Dentro da casa. Ela limpou a maçã na blusa, então levou até a boca e deu uma dentada. Era tarde demais e ela não tinha ideia do que faria a seguir. Não tinha planejado nada além daquilo, e não se sentia culpada. Pelo menos a maçã, ela pensou, estava doce.

IntermediárioWhere stories live. Discover now