Jaque caminha até nossas bolsas, que estão largadas no chão do quarto. Em seguida, ela me puxa pela mão, me abraça de lado e me guia até a porta. Eu respiro fundo, encostando minha cabeça em seu ombro. Ficamos em silêncio até chegarmos ao elevador.
Assim que pisamos lá dentro, eu me viro para Jaque e a abraço com força, enterrando meu rosto em seu pescoço. Não choro, não mais, porque a faísca de gratidão em meu peito suprime todas as outras emoções.
— Jaque, eu não sei nem como começar a te agradecer. Ninguém nunca fez algo assim por mim. — Dizer "obrigada" parece simples demais para demonstrá-la tudo o que estou sentido nesse momento.
É claro que eu tenho amigos que me defendem e me aceitam do jeito que eu sou. Tessália, minha melhor amiga, foi um dos maiores presentes que eu recebi da vida, porque apesar de todos os preconceitos que carregava consigo e do senso comum que reproduzia quando se mudou para a capital, resultado de uma infância em cidade pequena, ela foi capaz de me respeitar e se interessar por tudo o que eu poderia ensiná-la.
Mas minha amizade com Jaque ainda está florescendo, sendo cultivada. Vê-la me defender dessa forma, mesmo me conhecendo tão pouco, desperta em mim uma afeição difícil de explicar. Não é fácil encontrar alguém tão disposto a proteger os outros a qualquer custo, por menor que seja o laço que tenha com essas pessoas. Isso a torna única. Especial. Exatamente o tipo de pessoa que eu gostaria de ter ao meu lado.
Jaque acaricia meus cabelos enquanto responde.
— Eu sei que eu não devia ter tentado fazer justiça com minhas próprias mãos, mas essas coisas me revoltam tanto! Você não merecia passar por isso. Nenhuma mulher merece — se corrige, encostando sua bochecha na minha cabeça. — Eu nunca vou conseguir ver uma situação dessa e ficar parada... Eu nem pretendia fazer nada, eu só queria saber o que tinha acontecido. Mas quando eles começaram a falar, eu fiquei com tanto nojo dos dois que... A raiva me subiu à cabeça.
Eu desencosto do seu ombro, levantando o rosto para encarar seus olhos castanhos. Eles estão brilhando, como se ela lutasse contra as próprias lágrimas.
— Eu sei que você é forte e eu tenho certeza de que você sabe disso, mas... Eu espero que você nunca deixe que esse tipo de situação te faça acreditar em uma culpa que não é sua. Não tem nada errado com você. A sua bissexualidade não é nenhuma anormalidade, muito menos uma desculpa para as pessoas acharem que podem fazer o que quiser. Acreditar e perpetuar esse pensamento é de um mau-caratismo sem fim e essas pessoas são estúpidas e ignorantes e criminosas. Mas você... Nós não temos nada a ver com isso. — Ela respira fundo e deixa cair uma lágrima solitária antes de continuar. — Eu sei que é muito difícil assumir quem somos no mundo que vivemos, mas aceitar calada nunca vai ser a solução. A gente precisa se unir, se defender, se levantar contra o preconceito que não só nos exclui e nos oprime, como também nos mata. Ter orgulho de quem somos é o maior escudo que podemos ter contra toda a discriminação.
Não consigo desgrudar os olhos dos dela. Eu assinto em silêncio em compreensão a tudo o que ela diz. Nada do que Jaque está falando é novidade para mim, exceto sua confissão implícita, mas é fácil se esquecer desses preceitos quando somos vítima da intolerância. O apoio que ela tenta me transmitir através de suas palavras e do seu olhar me faz sorrir. Dentro de mim, minha própria força se agita, em concordância ao seu discurso.
Jaque sorri de volta, segurando uma das minhas mãos no mesmo instante que as portas do elevador se abrem para o térreo. Eu a aperto de leve e, sem soltá-la, caminhamos para a saída num silêncio de mútuo companheirismo.
E apesar das batalhas lá fora continuarem sendo tão brutais e mortais quanto sempre foram, eu sinto que sou capaz de liderar uma revolução se sempre puder ter aliados como Jaque ao meu lado.
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Resistência
Short StoryIndecisa, confusa, promíscua, não confiável. Flávia já foi taxada de todo o tipo de coisa absurda desde que decidiu assumir sua bissexualidade - e ser mulher não facilitava em nada sua luta diária contra o preconceito. Um novo ataque a sua sexualida...