15 de Fevereiro - Paz Perpétua

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A chuva pingando da aba do melhor chapéu preto de Amma. Os joelhos de Lena batendo contra a grama grossa em frente ao túmulo. A sensação de picadas na minha nuca, resultado de ficar perto demais de tantos da espécie de Macon: Incubus, Demônios que se alimentavam das lembranças e dos sonhos de Mortais, como eu, enquanto dormíamos. O som que eles fizeram foi diferente de qualquer outra coisa no universo, quando se infiltraram no resquício de céu escuro e desapareceram logo antes do amanhecer. Como se fossem um bando de corvos negros, levantando voo de um fio elétrico em perfeita sincronia.

Esse foi o enterro de Macon.

Eu conseguia me lembrar de detalhes como se tivesse acontecido ontem, embora fosse difícil de acreditar que algumas dessas coisas tinham mesmo acontecido. Enterros eram assim, complexos. E a vida também, eu acho. As partes importantes você bloqueia totalmente. Mas os momentos aleatórios e distorcidos assombram você, se repetindo sem parar em sua mente.

O que eu conseguia lembrar: Amma me acordando de madrugada para que conseguíssemos chegar ao Jardim da Paz Perpétua antes do amanhecer. Lena congelada e destruída, querendo congelar e destruir tudo ao seu redor. Escuridão no céu e na metade das pessoas de pé ao redor do túmulo, e que não eram nem um pouco pessoas.

Mas, por trás disso tudo, havia uma coisa da qual eu não conseguia me lembrar. Estava lá, persistindo no fundo da minha mente. Eu estava tentando pensar naquilo desde o aniversário de Lena, sua Décima Sexta Lua, a noite em que Macon morreu.

Eu só sabia que era uma coisa que eu precisava lembrar.

...

Na madrugada do enterro, estava preta como piche do lado de fora, mas fachos de luar brilhavam por entre as nuvens e entravam pela minha janela aberta. Meu quarto estava frio, mas eu não ligava. Deixei a janela aberta nas duas noites depois que Macon morreu, como se ele pudesse simplesmente aparecer no meu quarto, se sentar na minha cadeira giratória e ficar um pouco.

Eu me lembrava da noite em que o vi de pé ao lado da minha janela. Foi quando descobri o que ele era. Não um vampiro ou uma criatura mitológica de livro, como eu desconfiava, mas um verdadeiro Demônio. Um que podia ter optado por se alimentar de sangue, mas preferiu se alimentar dos meus sonhos.

Macon Melchizedek Ravenwood. Para o pessoal daqui, ele era o Velho Ravenwood, o recluso da cidade. Era também tio de Lena e o único pai que ela teve.

Eu estava me vestindo no escuro quando senti um puxão quente dentro de mim, o que significava que Lena estava lá.

L?

Lena falava das profundezas da minha mente, tão perto quanto alguém podia estar e ao mesmo tempo tão longe quanto possível. Kelt, nossa forma não falada de comunicação. A língua sussurrada que Conjuradores como ela usavam muito antes de o meu quarto ter sido considerado ao sul da linha Mason-Dixon. Era a língua secreta da intimidade e da necessidade, nascida em uma época em que ser diferente podia fazer com que você fosse queimado na fogueira. Era uma língua que não deveríamos ser capazes de usar, porque eu era Mortal. Mas, por algum motivo inexplicável, nós conseguíamos, e era a língua que usávamos para falar o que não era dito e o que não deveria ser dito.

Não consigo fazer isso. Não vou.

Desisti da gravata e me sentei na cama, as velhas molas do colchão gemendo debaixo de mim.

Você precisa ir. Não vai se perdoar se não for.

Por um segundo, ela não respondeu.

Você não sabe como é.

Sei sim.

Eu me lembrei de quando era eu sentado na cama com medo de me levantar, com medo de colocar o terno e me juntar ao círculo de orações e de cantar "Abide With Me" e de participar da triste procissão de luzes de farol de carro pela cidade até o cemitério, para enterrar minha mãe. Eu tinha medo de que isso fosse tornar tudo real novamente. Eu não conseguia suportar pensar nisso, mas abri minha mente e mostrei a Lena...

Dezessete LuasWhere stories live. Discover now