01. Se eu pudesse congelar o tempo

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Hoje é o dia D, o ponto G, uma letra à sua escolha em nossa luta diária contra o ódio que se instaurou no país. É triste ver o quanto as pessoas se acomodam, como a tudo se habituam, um dedo que aponto para mim também. Se tivéssemos um pouco mais de atitude e inteligência, o pior teria sido evitado.

Seguindo o combinado, pego a mochila e vou à praça Roosevelt, ao lado da Igreja Nossa Senhora da Consolação. O ponto de encontro não foi definido ao acaso nem por provocação. Quarteirão cultural, reduto de artistas, local de reunião dos que lutaram contra a ditadura, ponto final da extinta Parada do Orgulho lgbt, terra de sátiros e atores de teatro, a história da Roosevelt faz dela mais do que uma amálgama de ferro, cimento e obras superfaturadas. Além disso, tem boas rotas de fuga, caso precisemos correr.

Não é fácil ser um pacifista em tempos de repressão. Fazer a diferença sem pegar em armas. Manter o senso sem deixar que o medo cale nossa voz.

Meus anos de terapia me ensinaram três coisas: primeiro, tenho uma tendência a tentar controlar situações que não estão sob meu controle; segundo, eu faria qualquer coisa pelos meus amigos, qualquer coisa mesmo; terceiro, minha relação com a realidade é ligeiramente diferente da mantida pelo restante das pessoas. Ontem à noite, a combinação dessas três coisas acabou com a possibilidade de um sono tranquilo. Por mais que me concentrasse em dormir, só conseguia pensar no que poderia dar errado hoje quando me encontrasse com Amanda e Cael.

O truque foi apelar para um café forte quando acordei. A ansiedade ao chegar ao ponto de encontro deixa minha respiração pesada, e as paredes do pulmão parecem colapsar. Preciso de uns segundos para recuperar a calma, então vou para o meu canto favorito da praça esperar pelos dois. A pista de skate tem um bom campo de visão, com uma tartaruga voadora grafitada sobre uma floresta de edifícios. O tanto de verde faz lembrar os antigos jardins verticais que ladeavam o Minhocão, hoje só mais um caminho cinzento.

Sentado ali na borda vendo um menino e uma menina de mochila nas costas improvisarem manobras, eu espero. Vinte minutos de tombos e skates no ar se passam, e resolvo ligar para meus amigos. É claro que nenhum dos dois atende o celular. Sabem que vou falar um monte pelo atraso. Me resta ficar de olhos atentos.

É incrível como amanhece cedo nesta cidade. A gente já acorda na pressa, com caminhão buzinando, cachorro do vizinho latindo, radialista contando a extensão do engarrafamento como se fosse final de novela. Mais uma estranheza à qual a gente se acostuma, mas que não precisava estar aqui. Bastaria alguém e força de vontade. Bastaria dizer chega. O problema é que o "basta" abre as portas para o desconhecido. E, hoje, o desconhecido causa medo. Infelizmente, é essa a nossa cidade. Desperta para a rotina louca do trabalho, narcoléptica para todo o resto.

Amanda e Cael atrasam quase uma hora, me deixando preocupado e meio puto ao pensar na cama que abandonei ainda de madrugada. Ao vê-los no fundo da praça, contudo, respiro aliviado. Pulo do muro onde estou e me despeço da tartaruga.

Eles vestem roupas discretas, conforme combinamos, cada um com uma mochila nas costas. Amanda se aproxima acenando. Se desculpa com um abraço gostoso, sua especialidade. Ela é macia como ninguém mais sabe ser. Com dezessete anos, é a mais nova entre nós. Acabou de terminar o ensino médio e parece estar sempre ligada no duzentos e vinte.

Cael vem logo atrás. Caminha de um jeito elegante, seu cabelo grosso e cacheado balançando com a preguiça de quem acabou de acordar. Os dois são irmãos, cópias quase idênticas dos pais, e parte do grupo que chamo de melhores amigos.

— Muito bonito ignorar minhas ligações — já vou reclamando.

Para desarmar meu bico persistente, Cael puxa meu mamilo como se fosse um elástico. A cara de dor que faço não é das melhores.

Ninguém Nasce HeróiWhere stories live. Discover now