Já tentei, nas entrelinhas de todos esses anos, adquirir forças para andar. Andar no ar, para não sentir o relevo dos corpos podres, fétidos e toda a merda espalhada no chão, a parir da sola de meus sapatos. Mas aí me recordo que o ar está tão impuro quanto. E é justamente o cheiro verminoso da cidade que corta, ignobilmente, todo o meu brio e cor. Só há uma cor agora: o cinza disforme da fumaça de cigarro, do ar expelido do bueiro mendigo, do concreto torturado, pisoteado todo santo dia por almas que pecam de todas as maneiras: o homem que bate na mulher e filha, o marginal que matou o pai de família apenas por uns trocados, a prostituta atrás de entorpecentes para tirar férias de sua vida de tentações forçadas, e todas as outras almas dementes que ali passam, todas bandidas em potencial, mas que ficam circunspectos nos pecados permitidos pela baixa lei; o cinza dos prédios que obstruem, junto com a luz poluidora, o céu obscuro sem habitantes. Esse cinza configura-se de tal maneira que faz soar como se o céu estivesse se desfazendo, como se cada tijolo escuro estivesse se desfragmentando, como dentes podres, e revelando, deste modo, o verdadeiro mundo cinza por detrás do muro escuro. O muro escuro que nos ilude, nos fazendo crer que existe dimensões menos pecaminosas, mas que, revelada a verdadeira faceta, tnos tornamos puro pranto: além de um mundo pecaminoso, só existe mais pecado. O pecado existe, e Deus o criou.

          Creio que o único erro de Deus foi ser Deus. O erro de tomar para si tal fardo fétido: o fardo eterno de ter-nos criado. Espero, mesmo com suas falhas, que ele consiga dormir bem, pois eu não posso. Sempre torna à casa, em dias impropícios, um sonho moribundo de regojiza-se de minhas chagas sem relevo, que não aquieta minha labutação mental. O sonho do querumbim. O sonho é, em muitos aspectos, um quadro impressionista, que não possui detalhes claros e nítidos. O sonho todo é narrado por uma voz imperatriz, estrondosa, que me põe em espera, na arquibancada. Sinto que Ele me vende esse sonho para que, justamente, eu nunca durma, para que nunca feche os olhos para o cabaré desse mundo, que eu não caia nesses sonhos tranquilos, vagões ordenados a ouro que vão rente ao inferno. Não consigo (nem devo) dormir nesse ninho de demônios. É um ninho enorme, esse planeta, cheio de locais calmos e focos menores de roedores infernais tentando roer as paredes para que, assim, infeste todo o cosmo. Locais imaculados dentro dessa morada de ratos, onde é possível dormir com tranquilidade, tal que dá para esquecer que vive-se em proto-inferno. Mas isso não muda o fato de que vive-se em um ninho de ratos. E com esse fato, não posso lidar com a consciência ilesa. Então apenas caminho.

          Caminho naquele concreto mentalmente quebrado, com todas as suas articulações e conjecturas rachadas e raquíticas, com o olhar parvo e perdido, com a íris a rebolar sem parar no globo ocular, na insanidade perpétua ou à procura de sonhos perdidos. Eis, sob esse véu de estrelas que habito, o único ser que eu realmente me identifico e simpatizo. Tenho vontade até de pedir desculpas por, também, torturar sua pele semi-alva.

          Já estou em anos desgastados, mas sinto que não vivi muita coisa. Os intemperismos do viver açoitaram-me como qualquer outro, mas sendo que nunca fui montanha. Nunca tive pico a tocar as maçãs do rosto do céus e do além para que os seus suspiros perfurassem minha pele e bifurcassem minhas vontades. Vivi uma vida ordinária, ordinariamente, e foi esse, sozinho, todos os meus erros. Só agora, com mente de olhar insano e com a pele já fraca, é que um brio juvenil vem me dizer olá. Sussurras palavras doutros tempos, que caso meu coração ainda batesse com vigor de 16 primaveras, meus ouvidos compreenderiam cada sílaba e todos os pensamentos e vontades entre as palavras e vírgulas. Ele me sufoca, enforca minha garganta para que eu revide, tente sobreviver, e quando conseguir, que eu respire com um suspiro de quem recupera os beijos macios do ar, fazendo o respirar uma nova arte. Mal sabe ele que já não respiro. Não vigorosamente. Se tentar me sufocar, morrerei. E caso sobreviva, com o suspiro da liberdade urgente, meu coração e tudo o eu entrará em pânico mais do que urgente, e também morrerei. Escolhestes a pessoa errada, cara vontade. Era para ter-me visitado luas atrás, sonhos atrás. Quando percebo, estou estacionado no meio da calçada, fazendo os transeuntes desviarem-se, como água que se desmaterializa antes um obstáculo no rio, uma pedra desgastada. Mas não sou pedra, pedras duram mais. Pelo menos, duram com uma beleza moldável. Não sei que elemento da natureza poderão minhas analogias tomarem forma. Que que eu sou? Homem que não; possuem suas glórias inventadas, títulos imateriais, mas o orgulho, mesmo que infundado, existe, e só isso basta para que o coração esteja a bater com a intenção de bater num segundo novo, no dia de amanhã, apenas para reclamar sua proclamações perdidas no cais do tempo. Meu coração bate, não sei o porquê. Talvez anomalia. Doença. Ou um milagre. Se eu realmente torno-me gente, depois de todas as esperanças serem demitidas de minha mente, digo, sem medo de errar, que sois um milagre. Veremos. Mas antes, volto a caminhar no concreto torturado. Canso-me de não fazer nada em público, às vistas de roedores: para isto, serve o espaço que deita sob as telhas de minha casa.

          Já em casa, procuro, nas encruzilhadas de meus patrimônios, algum artifício de lazer, ou apenas ocupação. Só resta a televisão. Assisto e não assisto. Só estaciono novamente, só que desta vez, com um espetáculo ao fundo. Mas isto eu já fiz lá fora, não é mesmo? Mas agora estou sentado, aí minhas pernas não doem. Já é luxo o suficiente; tenho lucro. Vou, finalmente, à cama, em horas não muito cristãs. Meu olhar é sarraceno, mas quero chorar em herbráico. Sem delongas, troco minha roupa pelo tecido leve e sóbrio de algodão, e tento dormir. Quando adormeço, o palco é preparado para a miraculosa caravana da incógnita, o teatro metacarnal. Os Outros preparam a maquilagem, encenam rostos que não são seus e começa o espetáculo. Sonho.


          [No morro do perpétuo, onde o último querubim quebrou a asa, as lágrimas de alegria de Lúcifer encharcaram cada sulco do mundo, até mesmo os inacessíveis, onde o vento não corre. Salga a sacra chaga do anjo abatido que, infalível, não treme um único tendão e nos olhos, nenhum relato de lágrimas a escorrerem rente às maçãs de seu rosto. Milagre inculto, a humanidade clama para os sussurros do destino para que parem com a tortura do homérico guerreiro de eterna existência. Debruçado na terra seca e rachada, apoiado em seus cotovelos, sua cabeça, entre os ombros levantados, se ergue, ainda inabalável, e se apoia agora com as mãos, revelando os antebraços sujos de terra. Ergue o tronco e agora, se equilibrando inteiramente na base de seus joelhos, vislumbra o céu perfurado, cheio de furos, igual uma lona, e a luz estrangeira, vinda do outro lado. Sua força ancestral pede licença, dando lugar para a fadiga eternal. Seus lábios tremem e os dentes se colidem iracundos de fraqueza. A visão enturvece. A luz, antes definitiva e certa, se desmancha em seus sentidos, perdendo a forma em suas córneas, se tornando água corrente, de cores mescladas, nas confusões de sua mente atordoada.

          Anjos veem mais cores e muito mais saudavelmente que um ser humano de vontades primitivas e duvidosas. Ali, porém, o anjo perde em tudo o seu primor e torna-se tão ridículo quanto um mendigo em um semáforo: todos os seus sentidos parvos, procurando por mais álcool no sangue, para um transe eterno e sem culpa, para escapar da moribunda vida. Mas o rum que o anjo procura é o próprio passado. Voando, em ares imateriais, nos sopros cósmicos, onde poeiras estelares colonizavam seus ombros largos. Onde a temperatura nula do vácuo fazia de seu corpo uma planície sem fronteiras com o universo, com seus átomos transitando sem medida entre seus irmãos errantes do perpétuo escuro sideral. Os sentidos, que são um vigarismo de último nível dos mortais para com a natureza, que lhes permite imaginar o rei universo em seu total esplendor, são apenas um brinquedo quebrado, já que limitados que são, não sonham, nunca, como Ele realmente é. E os anjos, semi-perfeitos, ignoram tais artifícios delimitantes, mestiços do imperfeito com o sujo. Eles, pois, príncipes das estrelas, tornam-se um só com o Senhor e a terra, seus pastos cobertos de juazeiros infinitos e belos. Mas, no leito de morte da razão, Lúcifer e seus cavaleiros infernais dilaceraram todos os servos do Senhor e aprisionou-os à eterna prisão do perfeito horror. Pior castigo para um ser inimaginável como ele. Ele foi expurgado da perfeição e pereceu ante o inimigo. Estático, espera pacientemente, com seus nervos recém-formados formigando e queimando sem parar, com suas terminações nervosas estalando que dão a impressão que gotas gélidas de chuva aterrissaram em suas pele, com a cara mole e frouxa, mas bela e imponente, apesar de tudo.]

          

           Acordo sem clamor nos olhos, apenas dúvidas débeis sobre os eventos impalpáveis que sempre tornam à minha mente. Sempre é assim, no acordar.


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⏰ Last updated: Jul 30, 2017 ⏰

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