O DUELO

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Desde há muito que os eruditos discordavam sobre a natureza mágica do mundo. Os cosmogenistas defendiam que a magia havia se originado no primeiro instante da criação dos universos, que havia sido inaugurada a partir do caos primordial e que se tornou umas das forças essenciais da ordem subsequente; já os transcendentalistas argumentavam que, na verdade, a magia sempre existiu e, se havia ordem, era porque havia sido engrendado por ela, ou seja, até os deuses e demônios seriam um resultado da existência perpétua da magia.

Foi num destes debates acalorados que Monsieur Leonard se irritou com aquele petulante professorzinho recém-contratado na Academia de Artes Arcanas. Ele se chamava Philisbert e havia vindo para atiçar os ânimos. Monsieur Leonard, assim como muitos da velha guarda, era um transcendentalista, enquanto Philisbert, como muitos jovens presunçosos e inococlastas, era um cosmogenista. Na verdade, as teorias de Philisbert eram ainda mais descabidas.

A magia é uma criação humana. Ela surgiu quando atingimos mais altos níveis de consciência, podendo plasmar e subjugar os elementos naturais. Não há magia sem a nossa mente.

E ele vinha respaldado pelas mais revolucionárias teses do Novo Mundo, num misto de tecnocracia e subversão, sem nenhum fundamento na ordem observável da realidade.

Discutiam no corredor mesmo, cercados por um grupo de alunos curiosos, muitos deles, mesmo sem declarar publicamente, a favor das inovadoras e bombásticas argumentações de Philisbert.

Num certo momento, a razão deu lugar à emoção.

O senhor é um rapazola ignorante, gritou Monsieur Leonard, esbofeteando Philisbert.

Antes que este pudesse reagir, os alunos e outros professores o seguraram e tentaram apaziguar os ânimos.

Um duelo! Gritava Philisbert. Um duelo amanhã ao nascer do sol.

Não se falava de outra coisa na Academia. Pelos corredores, nos vestiários, no dormitório, no grande salão, nos passeios e jardins. A notícia do duelo se disseminou com a velocidade de uma flama de Aegon. Logo, todos sabiam e todos aguardavam impacientemente o dia seguinte.

Monsieur Leonard aceitaria o desafio? Esta era a grande indagação.

Pois ele era um professor discreto, bastante respeitável e que raramente se envolvia em disputas ou controvérsias. É claro que havia aquele caso, trinta e cinco anos antes, mas ele também era um jovem impetuoso e que buscava se afirmar no mundo da magia. O que se dizia era que, no único duelo que um dia havia participado, ele quase matou seu adversário, que gastou o resto de sua vida num quarto acolchoado, endoidecido pela poderosa magia usada por Monsieur Leonard. Uma culpa da qual ele provavelmente nunca se libertou.

Naquela noite, Monsieur Leonard se enterrou na biblioteca e pesquisou os encatamentos e feitiços mais eficazes, embora não letais, listadas no infindo compêndio mágico de Hermes, o Egípcio. Monsieur Leonard era um mago natural, mestre nos elementos e na dança das esferas, mas também se interessava pela convocação de criaturas míticas, apesar de seu tremendo receio em lidar com tais forças indomáveis. Da última vez que um destes feitiços foi realizado na Academia, pelo já finado Mestre Domenicus, passaram quinze dias caçando o Cérbero pela floresta e três professores se feriram gravemente.

Talvez um dragão negro. Cogitou Monsieur Leonard. São rápidos e fáceis de controlar, além de incrivelmente assustadores. No entanto, logo mudou de ideia e passou a analisar as várias configurações e intensidades de bolas e jatos de fogo, que tradicionalmente nocauteiam um oponente em instantes.

Mas ele considerava se realmente devia lutar. Para quê? Uma simples batalha de egos e ele já não era mais um pirralho que necessitava da aprovação dos demais.


Amanhecia.

Todos os professores e alunos se reuniram no pátio, ao longo do octágono mágico onde, há milênios, ocorriam os certames.

Estavam todos muito empolgados, pois ali estava representado não apenas um embate de gerações, mas um confronto de cosmovisões. A vitória, mais que orgulho pessoal ou ego, traria uma justificativa teórica e prática para seu defensor.

Philisbert trajava uma túnica negra que se arrastava pelo chão e uma bengala prateada. Ansioso, caminhava de um lado ao outro pelo octágono.

Ele não virá. Gritou. É um covarde. Alguém traga aquele pústula caquético até aqui.

Bateram à porta da cela de Monsieur Leonard, que não abriu. Quando a arrombaram, encontraram-no morto no chão.

Comoção. Logo suspeitaram que fosse um assassinato. Interrogaram e, durante semanas, a alta cúpula se reuniu para julgar Philisbert. Suspeitavam que houvesse usado magia negra, algum feitiço necromântico proibido ou desconhecido. Houve cismas entre os membros do conselho, alguns acreditavam, mesmo sem provas, na culpa de Philisbert. Enfim, absolveram-no.

A morte de Monsieur Leonard foi por causas naturais. Foi dado o veredito.

Nada é natural aqui! Vituperou Madame Durant, a amante de Monsieur Leornad por duas décadas.

Ano passado, Philisbert se tornou o mais novo reitor da Academia. Veio repleto de ideias modernas. Já não é mais um cosmogenista, prefere ser chamado de mentalista. Defende que a mente humana é responsável por tudo que há e que não há nada fora dela. Defente também que a magia é ilusão; que a História é ilusão; que a morte é ilusão; que nós somos ilusão; que até a nossa mente é uma ilusão. Também defende que Monsieur Leonard não morreu, que, na verdade, foi ele quem matou Philisbert e depois assumiu sua identidade, que são a mesma pessoa, que nunca existiram.

Os alunos não vêm absurdo nisto. Ficam fascinados com os paradoxos. No entanto, os anciãos desferem duras críticas.

A morte de Monsieur é um marco. A magia está morrendo. Em breve, tudo será lenda. Neste momento, Philisbert enfim terá razão: tudo não terá passado de uma mera ilusão. E seremos esquecidos.

Ploče

01/08/2017

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