O carro desliza pela estrada, tão plana. O céu rapidamente mudando de cor. A minha esquerda uma muralha de pinheiros, à minha direita outra muralha. O rádio tocando uma estática qualquer, outrora fora uma música que acalmava os nervos. O asfalto se transforma em terra. A cabana surge em uma curva, tão grande. A madeira escura quase se camufla na escuridão da noite. Os lampiões acesos, alguém me espera. Sempre há alguém à minha espera. Paro o carro ao lado da cabana, com cautela. O vento gélido da noite invade o carro quando abro sua porta.
- Querido. – diz o senhor que está sentado nos degraus da casa. – Você não pode ficar voltando aqui sempre.
- Sinto muito. Minha presença o incomoda? – minha voz reverbera de uma maneira monstruosa.
- Sempre há lugar para mais um. – o senhor estende sua mão e aponta para algo atrás de mim. – Ele não pode entrar.
O homem sentado em cima do meu carro solta um suspiro triste. Seu rosto é completamente negro. Seus braços pendem do seu torso, presos por tendões. Fogo consome o carro por inteiro, não era o meu carro.
- Um desses dias, sabe? – o homem diz enquanto sua forma física derrete como uma escultura de plástico. – Um desses dias você ainda vai ter que me deixar entrar, velho.
O carro explode, sinto a explosão consumindo o meu corpo. Estou bem, nenhuma ferida. O velho se levanta do degrau e anda em minha direção. Sua mão toca meu ombro e vejo sua forma tremular, seu rosto se desfazendo em espasmos de dor horripilantes.
- As chaves estão debaixo do tapete. Não ligue para a mão. – diz o velho enquanto desaparece numa última oscilação.
Ando em direção à cabana. O chão coberto de cascalho estala a cada passada. Escuto pássaros tentando cantar em pios agonizantes, quase como gritos humanos. O tapete está lá, em frente a porta. Costurado em seu tecido um caloroso "Bem Vindo", verde contra vermelho. Levanto o tapete em busca das chaves.
No chão há uma pequena porta com maçaneta e tudo. Levemente bato em sua madeira com meus dedos. Ela se abre, uma mão sai do buraco no chão com as chaves penduradas em seus dedos. Agradeço pela ajuda e recebo uma pequena reverência de volta, uma simpática mão. Ótimos vizinhos que tenho nesta cabana. Uma por uma testo as chaves na porta até que uma gira para a esquerda e escuto a tranca se abrir.
Dentro da cabana apenas uma televisão. A luz da estática clareia o ambiente. Encontro-me dentro da cabana, mas não lembro de ter entrado. Os pássaros pararam de cantar, há apenas o som da estática no ar. O chiado, como a chuva. Uma imagem oscila em meio à estática. Um rosto.
- Escorregadio. – diz em sua voz robótica. Suas feições são plácidas, como uma pintura de um monarca. – Negro... Luz... Negro... Luz... Marrom... Vermelho... Negro... Branco.
- Capotou. – diz a voz de uma mulher. Olho ao meu redor mas não vejo ninguém. – Briga... Distração.
- Quieta. – diz a minha voz, mas não sou eu quem está dizendo. – Quieta... Quieta... Quieta...
A televisão desliga, tudo está escuro. Estou cego. Estou perdido. Quem sou eu? Ouço uma voz. De quem é essa voz?
Sua mente é fraca. Seu corpo está quebrado. Sua mente está quebrando.
Branco toma conta da minha visão. Fechar os olhos faz a dor diminuir, mas então o branco se torna vermelho. O vermelho me persegue pelos cantos imundos da minha mente. O branco me guia pelos cantos limpos de minha mente. Os dois querem contar algo.
Seu corpo é fraco. Sua mente está quebrada. Seu corpo está quebrando.
Um grito doentio, uma dor, nada. São as imagens que o vermelho me mostra. Uma hora eu acerto algo, outra, sou acertado. Em uma delas eu saio vivo, na outra estou morto. Mas como posso estar morto se estou aqui? Onde estou?
Sua mente é quebrada. Seu corpo está fraco. Sua mente está enfraquecendo.
Alguém implora, um pedido de desculpas, uma morte. São as imagens que o branco me mostra. Uma hora sou o morto, outra, estou vivo. Em uma delas eu saio ileso, na outra estou morto. Mas como posso estar morto se estou aqui? Onde é aqui?
Seu corpo é quebrado. Sua mente está fraca. Seu corpo está enfraquecendo.
Ah, pois agora me lembro. Obrigado voz na minha cabeça. Estou quebrado.
Abro os olhos e vejo meu corpo ao chão, vejo vermelho escorrendo dele, vejo o branco dos faróis. Está chovendo. A mão da mulher ainda segurando a minha. Não sinto meus braços.