Emma caminha insegura, seus passos parecem de um bêbado. O gosto amargo das sementes de junco ainda permanece em sua boca. Mas o veneno mortal, esse não fora experimentado e por isso ela fecha os olhos e respira fundo, pois por segundos evitou que seu coração partido e sua mente confusa cometessem aquela loucura. Ao invés disso, e ela ri ao lembrar, tomou o liquido do outro frasco, dado de presente por Audrey e entregue a ela pelo seu admirador. Aquele ajudante de farmacêutico lhe parecia agora uma espécie de anjo, talvez tenha sido o único homem (se é que já poderia ser considerado como tal) que se importou com ela. Um dia ela lhe agradecerá, pensa, e segue seu caminho pela estação de trem, no centro de Paris, no centro de um novo mundo...
Um apito forte soa no seu ouvido, alguém grita:
- Cuidado! Olhe para frente!
O trem se movimenta na plataforma e a barra do seu vestido se agita. Seus sapatos, seu vestido, tudo está com um aspecto deplorável. A mala que segura na mão direita não tem aquilo que deseja. Lembra de seus tempos de menina mimada, ainda na casa paterna, antes de ir estudar no convento, e as suas empregadas bajulando-a com roupas finas, cheias de apetrechos vindos da cidade grande. Naquele mundo de camponeses ela se destacava! Depois, já casada, e seus vestidos feitos sob medida, querendo impressionar a sociedade local. E o seu marido, tão idiota que nem percebia o empenho dela em se destacar dos demais, afinal de contas vestir-se bem, mostrava de certa forma, um espírito elevado. Os costumes da mesa também pouco o interessavam, enchia aquela boca de qualquer coisa que colocassem à sua frente. Sem falar do seu lado intelectual, inexistente. Livros e almanaques farmacêuticos eram a mesma coisa! Com um marido como o seu só lhe restou meter a cara em decepções, e o destino a beijar-lhe a face com sua crueldade, fazendo o tempo galopar, a idade avançar sem prazer, sem realizações. Portanto sim, o casamento foi a primeira decepção! E depois o hábito das rendas e sedas, detalhes perfeitos entre o pescoço e os seios, a volúpia do veludo roçando-lhe as pernas nuas, sem nada por baixo, na intenção de surpreender seu amante, o primeiro deles. Porque o outro, ah! aquele amante mais intelectual, nem consegue dizer seu nome para si mesma... e foi com ele que ela esteve em Paris pela primeira vez. O sol a deixa cega por segundos, o efeito da viagem somado aos últimos dias de pouca comida lhe embrulham o estômago, ela precisa se apoiar em alguma coisa para não desfalecer.
- A senhora está passando bem?
- Ah, sim, obrigada. Foi só um mal estar passageiro.
- Tenha cuidado com os trilhos, por pouco a senhora não cai lá embaixo...
- O cavalheiro é muito amável, mas estou bem agora, irei sentar-me um pouco.
Ela vê o homem se afastando enquanto resolve se sentar no banco mais próximo. Dali, ela consegue observar toda a Estação e as ruas que a cercam. O movimento de carruagens lhe desperta para uma nova realidade: está na cidade grande, no coração da França, e as fumaças de enormes chaminés que se misturam às nuvens lhe apertam o peito. Sim, decidiu-se pela liberdade, mas agora que estava ali, teria de ter muita coragem para seguir seu plano. Abriu a bolsinha delicada, ainda dos tempos da corte, com bordados em relevo de flores azuis e rosas. E com pesar contou pela décima vez as poucas moedas que ainda lhe restavam.
Um garoto se aproxima:
- Madame, um trocadinho para comprar um pão.
Emma de repente lembra de sua filha. E esse sentimento lhe provoca um estremecimento pelo corpo, teria ela apagado da memória a existência da filha? Com tantos dramas ela deixara de lado essa preocupação! Pobre Berta, criada longe da mãe, isso sim é que era um problema real.
- Madame, a senhora está bem? Precisa de algo?
- Ah, sim, sim, estou bem. Qual a sua idade meu amigo?
- Eu já completei onze anos, madame.
Ao perceber o estado das roupas do menino, Emma sentiu que se Berta estivesse com ela teria o mesmo destino. Aquele rostinho rechonchudo e branco não aguentaria as intempéries das ruas. O menino ainda esperava por um trocado e Emma observou seu rosto, os dentes mal cuidados, os cabelos grudados no pescoço tamanha sujeira entre os fios claros, quase loiros. As mãos imundas e ásperas do menino roçaram em sua mão coberta por uma luva de seda fina, a única que lhe restara. Emma estendeu-lhe todas as moedinhas que possuía.
- Aqui está, meu bom menino.
- Muito agradecido, senhora. Que Deus lhe proteja.
- Espere! Em troca preciso de um favor...
- Pois não milady?
- Você é inglês?
- De jeito nenhum. A senhora não gosta que lhe chamem milady?
- Preciso de um abrigo para essa noite, e talvez a próxima.
- Posso guiá-la até o Langlois...
- Não, não. Um local mais simples me servirá.
- Se a senhora não se importa, conheço uma casa de moças solteiras.
- Sim, por favor.
Emma lembra que jogou sua aliança de casamento fora no dia em que decidira se matar. Somente depois, na casa de repouso, é que mesmo não tendo cometido suicídio, sabia que algo dentro dela morrera e ficou feliz com a ausência da aliança em seu dedo.
- Posso carregar a sua mala? O caminho é por aqui...
Ela decide seguir o garoto. Agora seus passos são mais firmes, o ar entrando pelos seus pulmões, afinal, é uma manhã de primavera.
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Depois do veneno
FanfictionNão era fácil ser mulher no século XIX, especialmente para as almas mais sensíveis e rebeldes como Emma Bovary, que cansada de sua vida, pensa em suicídio. Então, seguindo o conselho de uma misteriosa amiga, ela simula uma doença grave e é enviada a...