Voltar ao princípio, ela me disse...
Eu tinha treze anos em meados daquele outono. E recordo como particularmente aquela manhã de sábado raiou fria como gelo de nevasca. As gotas da chuva fustigavam as janelas e explodiam em milhões de gotículas menores ao baterem contra o teto. Um trovão partiu os céus quando eu fechei a última página de um trágico romance; extasiada e descrente como um bebê, como alguém maduro e calejado, enfrentando a frustração ao se ver no fim daquele falso futuro orgástico, com as mãos estendidas ao infindo horizonte estrelado, para além de campos e cidades beijados por frias noites solitárias.
O romance era o predileto de minha mãe. Ela guardou-o com carinho numa caixinha de memórias de sua infância, talvez na frívola esperança de ir além dos mocinhos e mocinhas das novelas que lia quando mais jovem e menos sábia. Porém, ali, ela era o retrato de expertise e experiência. Era sabedoria contida em sua feminilidade, era moral e bons costumes recobertos com uma fina camada de uma falsa onisciência. Minha mãe era trevas, mas tinha a luz da Palavra. Era temor e retaliação, mas com a benção de uma estranha Misericórdia. Minha mãe era compaixão com as criaturas d'Ele, mas me dizia vez após vez para "não morder as maçãs das cobras", não confiar na benevolência de estranhos.
Demorei para entender seus porquês, mas compreendi-os. Naquele outro sábado tempestuoso de outro outono rigoroso. Naquela noite na qual o sangue de minha mãe contrastava com o azul profundo e melancólico das ruas. Ela morreu estendendo a mão para a estranha gentileza de estranhos que em nada puderam ajuda-la. Ela morreu estendendo a mão para todo o além intangível que estava aquém de seu alcance. O horizonte, as luzes e as estrelas. Sempre gostei muito de estrelas. Após perde-la, noite após noite antes de dormir eu olho para o céu, guio-me pela estrela mais brilhante e lhe digo "Boa noite, dona Marion".
E então durmo o sono dos tolos. Sonhando com o futuro orgástico, onde meu rosto brilha mais que a luz de estrelas mortas. Sonhando em estar grata por finalmente alcançar a pessoa que quero ser, pois eu ainda acredito nisso.
E eu ainda acredito na gentileza de estranhos.
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A Luz de Estrelas Mortas
General FictionEssa é a saga de uma mulher que acreditava. Carmen acreditava na liberdade da estrada aberta, acreditava na pessoa que queria se tornar. Acreditava ser possível escapar das armadilhas privadas de cada indivíduo. Entretanto, na América de meados d...