Êxodo II

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A vida é um jogo da memória – e somos todos perdedores. É difícil perceber como somos impressionáveis, meros corpos à mercê dos desmandos de nossa mente. Esquecemos o que o cérebro crê ser conveniente, relembramos toda noite aquilo que precisa ser lembrado.

No fim do dia somos só corpos animados que esquecem e que recordam, que recordam e que esquecem. Porém eu não me esqueço. Não daquela noite, tão recente, daquele final de inverno onde as promessas de uma primavera em minha vida não foram cumpridas. Foram roubadas de mim, foram roubadas de todas nós, mulheres castas e infelizes que aguardam bênçãos e aprovações que não virão.

Minha mãe era bem forte. Poucas vezes vi Marion Clay Jensen chorar, nem quando meu pai batia nela. Ela não chorou quando morreu, disseram. Mas asseguro que se lembrou das duas filhas que ela nunca mais veria. Eu corri. E orei baixinho para ela na noite de sua morte com o temor que minhas preces fossem só palavras vazias reverberando na escuridão.

– Abandone as esperanças, Carmen – minha irmã aconselhou uma vez. – Nós louvamos a um Deus surdo.


Implorava para que algo ou alguém me ouvisse em meu ímpeto de fuga. Estava chovendo, a névoa distorcia minha visão. Minhas roupas não eram boas o bastante para lidar com aquele frio atroz e repentino, meu raciocínio ia desfazendo-se aos poucos, misturando-se ao ar gelado e às luzes frias como o orvalho que caía. Tudo era vermelho como sangue, mas não estava azul a noite? Ali, naquela altura, ficou difícil lembrar com exatidão das coisas necessárias, da ordem linear dos fatos ou do instante crucial em que algo deu errado.

Contudo, agora, aquele dia ecoa em minha cabeça. Parecia tão normal em seu começo... eu me lembro, ah, sim, é tão nítido para mim. O sol pendia alto no céu azul como o oceano quando acordei, um sol claro e reluzente, atípico para às vésperas do inverno. O café da manhã tinha o aroma de dias bons e agradáveis como aqueles de minha infância a muito já esquecida. Inicialmente a única coisa atípica que vi foi o semblante de meu pai: fechado, temeroso e irritado. Problemas no trabalho, apostei. Dona Marion não teve certeza, questionou-me se eu fiz alguma coisa. Decerto eu relembrei todas as pequenas transgressões imperdoáveis que estava a cometer. E eu menti – outro pecado – eu menti, pois temi a fúria dele. Thomas Jensen não era Deus, mas punia como Ele, agia como Ele.

Queria ser maior que Ele.

Mas o Deus no qual eles creem é onisciente e onipotente, e meu pai não soube durante os três últimos meses que estive me deitando com o filho do pastor. Foi bom sentir Rick dentro de mim, agarrar-me a seu corpo másculo e ouvi-lo gemer meu nome enquanto eu me abria para ele, foi bom sentir toda a moral hipócrita escorrendo por terra quando ele fez-me estremecer. Sem puritanismos ou doutrinas, pecávamos como homens e mulheres no banheiro da igreja de seu pai durante os cultos, em minha casa nos horários de trabalho do meu pai, nos bancos traseiros de seu carro. Porém, se a origem do pecado foi meu desejo imundo e profano de não ser obediente, de ser dona de mim mesma, não poderia ser condenada sozinha: deitei-me com a sobrinha do pastor, Cristal – e foi a melhor relação de minha vida. E deitei-me também com dois funcionários de meu pai, quatro ou cinco colegas de escola – duas delas eram moças de minha turma, um professor casado que me traçou no vestiário às escondidas.

Contudo, foi com o filho do pastor que vi minhas ilusões moralistas e minha falsa segurança ruírem como castelos de areia à mercê da maresia. Foi esse o fator complicador inesperado de meu dia: meu pai descobrir quem eu realmente sou. Como as coisas aconteceram, não sei ao certo. Eu menti para minha mãe, lhe disse que durante a tarde estaria na casa de Sheron, minha amiga. Não estive. Os braços de Rick mantiveram-me aquecida quando o tempo começou a virar. Contratempos ocorreram: um carro desgovernado com algum bêbado bateu na árvore no jardim de minha casa. A árvore caiu e arrebentou alguns vidros, meu pai estava no trabalho. Ligou para Sheron para me buscar, pelo que eu soube. Ninguém atendeu.

Chegando lá de surpresa só encontrou o irmão mais novo de Sheron. Aquele fedelho fofoqueiro e desgraçado. Imagino o tamanho do sorriso dele ao falar para meu pai que não, com certeza, eu não estive lá. Só descobri isso mais tarde, porque Sheron chegou em casa e, pasma com o ocorrido, ligou para Rick.

Eu deveria ter corrido naquele momento. Eu poderia ter feito algo diferente logo ali, naquele instante. Gosto de pensar tudo o que teria mudado se não fosse o telefone. Se eu tivesse corrido sem pensar ao invés de ponderar e cogitar boas saídas.

– A gente faz o quê agora? – indagou Rick, ofegante.

Eu deveria ter dito: agora nós corremos. Mas não. Hesitei um só instante. Um segundo longo o bastante para imaginar, ponderar e tomar outra decisão. Peguei o telefone e disquei para minha mãe. Dona Marion atendeu exasperada em seu emprego, uma fábrica de costura há alguns metros do chaveiro de meu pai.

– Mãe?

– Carmen, onde você está? Você está bem? – ela temia e, portanto, eu também temi. – Seu pai está te procurando, onde você tá?

Olhei ao redor. Vi Rick pálido como o leite. Não tinha saída, não havia outra desculpa razoável. Havia agora uma única chance de distorcer a dura verdade em uma mentira suportável.

– Eu vim ao pastor, mãe.

– Ao pastor, Carmen?

– Eu tenho pecado – as lágrimas desceram, minha voz embargou. Não era mero fingimento. – E vim pedir ajuda.

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⏰ Última atualização: Aug 27, 2017 ⏰

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