Largo do Arouche, 112, 3 A

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Da janela, eu o vejo despontando radiante como o sol dos dias de verão, embelezando tudo que há de feio no Largo do Arouche. Ele veste a camisa xadrez azul, grená e vermelha que costurei com tanto carinho. Trata-se da mesma camisa que usara em sua partida. No bolso que estava vazio, noto um maço de cigarros (embora ele nunca tenha fumado em sua vida, até onde eu sei). Mashá tanta coisa que não sei sobre ele... Não importa. Neste momento, isso é o de menos. Não há espaço para picuinhas. Principalmente quando ele me sorri com todos os músculos da face. Manteiga derretida que sou, me deixo levar pela emoção.

Eu não ligo para suas rugas. Tampouco me importo com suas marcas de expressão, seus dentes tortos e malcuidados e a sua barriga protuberante. Eu nunca fui como as minhas amigas de infância, nunca quis um deus grego para ser meu homem. Aliás, às favas aqueles que criticam a nossa diferença de idade. Quem manda no amor é o coração, e este me ordena a sair em disparada. Prontamente obedeço, e vou ao encontro dele.

Como aguardei esse momento! Durante essa longa espera, que me fez perder a noção do tempo, também perdi muitas contas: quantas noites passei aos prantos, quantas vezes meu coração disparou ao confundi-lo com um transeunte rechonchudo qualquer e quantas vezes pensei no pior – que talvez ele tivesse morrido ou se acidentado, dentre tantas outras contas incontáveis.

A certeza que impera em meu coração é uma só: a felicidade estava de volta. Desde que aqui cheguei, trazida por ele, nunca tinha descido tão rápido a escadaria. Ignorei o bom-dia do seu Adenor, o porteiro, abrindo a porta de aço com uma força que, até então, desconhecia. Irresponsável, atravesso a rua sem olhar para os lados. Me jogo em seus braços, me esbaldando por completa. Dos meus olhos caem lágrimas, desta vez, da mais pura alegria.


Os mendigos fétidos, os ambulantes insistentes, os aprisionados pelo crack, os vizinhos bisbilhoteiros, as travestis falastronas, os comerciantes caricatos, as putas solitárias, as pombas gordas e cagonas e até mesmo o morador de rua que tem a irritante mania de simular sons urbanos pararam para ver nosso reencontro. Por alguns minutos, paralisamos o Largo do Arouche.

Este é o sonho que mais tenho sonhado. Gostaria que Paçoca, o gato abandonado que encontrei durante uma das raríssimas incursões ao que chamo de mundo externo, pudesse me entender. Assim, talvez eu poderia lhe explicar o que se passa na minha cabeça. Careço de uma alma amistosa para dividir as tristezas, alguém para mil vezes ouvir minhas lamúrias sobre o dia em que ele me deixou para nunca mais voltar. Faz falta um ombro amigo disposto a me ver imitar a forma como ele me olhou nos olhos e me pediu: "fica aqui que vou me ausentar por uns dias, mas não devo demorar. Não quero você andando pelo Centro, pois a vida lá embaixo é perigosa demais para uma flor como você".

Aceitei suas palavras da mesma maneira que um coroinha aceita a hóstia ou um miserável aceita um trocado qualquer. Sei que ele quer meu bem, que almeja me proteger. Desde que ele se foi, praticamente vivo na janela do terceiro andar do Edifício Mantiqueira, coladinho ao Hotel San Rafael. Daqui eu tenho visto a vida passar, literalmente.

A janela do apartamento onde vivo dá de frente para um balão, uma rotatória, que no centro é adornada por duas palmeiras pequenas, outras árvores maiores (das quais não sei o nome) e um busto de alguém que deve ter sido importante em São Paulo. Além dos carros e motos que por ali giram como cavalinhos de um carrossel, os transeuntes apressados compõem o cenário. A figura cativa do balão daqui da frente é um moreno magricela que apelidei de Sirene.

Por quê? Porque todos os dias ele corre em torno do balão enquanto remeda uma sirene. Seu histrionismo ataca meus nervos, mas me mantenho calada. A bem da verdade, diariamente, assisto a cenas que me enchem de melancolia. Por outro lado, o déjà-vu cotidiano me aproxima dos figurantes desse espetáculo monótono. A repetição rotineira me dá a impressão de que vivo um eterno looping. Distante e ao mesmo tempo próxima das pessoas, imagino e remonto suas trajetórias. "Certeza que o entregador de marmitas ouve música clássica quando volta para casa. O que será que aquela mulher loira carrega em sua bolsa vermelha? Seria uma bomba-relógio?" – divago.

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⏰ Last updated: Sep 20, 2017 ⏰

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Coisas que nunca contei, mas por sorte fotografeiWhere stories live. Discover now