Seu Mundo

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Seu Mundo sempre foi muito pequeno.

Sim, Mundo com “m” maiúsculo. Pois é Mundo apelido de Raimundo — ou, para usar de minúcia, Raimundo Antônio Nonato Silva de Jesus. Um nome demasiado comprido, seu Mundo sempre o considerou. Talvez por esse motivo o chamassem apenas por Mundo, para encurtar a abundância excessiva de sua graça. Porém, há quem acredite que tudo não passa de um trocadilho pejorativo, uma vez que, já dizia o ditado, “o mundo é pequeno”. E isto seu Mundo realmente o era, pequeno.

Um homem pequeno em tamanho (um metro e sessenta e dois) e, sobretudo, em espírito. Para começar, casou-se com a primeira mulher feia que o quis, porque imaginou que seria muito trabalhoso convencer uma bonita a sair com ele. Para sua sorte o que a dona Filó tinha de feia tinha em dobro de boa esposa – e ela era uma ótima esposa.

Outro exemplo de seu espírito pobre ilustra-se na ocasião em que compraram um aparelho de TV novo. Dona Filó naturalmente esperava adquirir um modelo com a tela maior, mais moderno e sofisticado, desde que dentro de suas possibilidades financeiras, é claro. Seu Mundo, no entanto, interessou-se por algo mais singelo, menor e barato. Sua linha de raciocínio foi que, se aproximasse mais o sofá da TV, ela pareceria maior, então por que comprar uma mais cara, afinal? Algumas pessoas poderiam chamar a isto de pragmatismo. Outras,  simplistas, de avareza. Este narrador chama de pobreza de espírito. Mas dona Filó chamou de burrice, coisa com a qual ela não compactuava, por isso levaram a TV grande mesmo.

Em sua defesa digo, todavia, que o mundo (este sim com “m” minúsculo) não foi nada fácil para ele. À ocasião da morte de seu pai, ainda lá no sertão, este mundo o obrigou a largar os estudos, muito cedo, tanto que seu Mundo nunca chegou a aprender a ler. Decorou a muito custo a ordem das letras que compunham o seu nome — demasiado grande. Evidentemente teve outras oportunidades para desenvolver a tal habilidade da leitura, principalmente após seu êxodo pessoal para o Sudeste, mas então faltou interesse, paciência, dos eventuais professores e dele mesmo, o aluno.

Chegou a resignar-se. Podia se contentar com as novelas, filmes dublados, rádio e telejornais. Mas sua filhinha, certa noite, inventou de lhe pedir o inalcançável, o impossível: “Papai, pode ler uma estorinha para eu dormir?”

Por que ela não lhe pediu logo a lua, ou uma estrela do céu? Por que ela não lhe pediu um gato, uma boneca que fala e anda? Ou então um unicórnio, como toda boa menina da idade dela faz?

A frustração o oprimiu indescritivelmente e atormentou sua consciência.

Ele continuou sua vida, talvez trabalhando com mais afinco. Em parte, a mais clara e principal, para que seus filhos tivessem uma educação melhor que a sua; a outra parte, meio inconsciente, era para compensá-los, sua esposa e filhos, por não ser tão esperto, tão culto quanto os maridos e pais dos outros costumam ser.

Assim criou e formou seus três filhos. A mais velha, Abgail, tornou-se psicóloga. O do meio, Renato, fez administração. A caçula, Lavínia — aquela mesma que queria ouvir estorinhas para dormir —, transformou-se numa bela professora.

Vejam como é esta vida, irônica. Sua caçula, recém formada, chegou em seu pai e deu-lhe um abraço antes de lhe pedir algo que o deixou tão desconcertado quanto aquele pedido de tanto tempo atrás: “Pai, deixe-me ensiná-lo a ler.”

Coitado do velho Mundo, quase engasga. Mas também, pego desprevenido assim. Ele, porém, cria-se velho demais para tal dispêndio mental. A essa altura da vida não teria mais cabeça para desvendar os mistérios daquele monte de letras trançadas em sequências aleatórias que transformavam-se em palavras, muitas vezes impronunciáveis, amontoadas umas sobre as outras. Algo complicado, um código indecifrável aos seus olhos. E, além de tudo, a vida já não lhe provara sua incapacidade para tanto? Era tarde.

“Nunca é tarde, pai!”, disse Lavínia. “Sempre é tempo para o despertar da leitura.”


Um ano depois...

Lavínia pôs um bilhete sobre a mesa. “Leia”, ela disse, imperativa.

Muitíssimo sério seu Mundo pegou o pedaço de papel e o fitou longamente. Uma cena que se repetira centenas de vezes antes, pois todos os dias ao fim das aulas lhe era proposto o desafio: Ler o maldito bilhete!

Só que desta vez seu Mundo caiu no choro, como um menino, copiosamente. Com remorso Lavínia correu para acudi-lo, talvez tivesse sido muito dura com seu pai idoso...

“Eu também, filha”, seu Mundo balbuciou, de repente, entre lágrimas.

Lavínia fez cara de espanto, de riso e de choro, tudo ao mesmo tempo. E eles choraram e riram juntos, abraçados.

O bilhete surrado na mão de seu Mundo dizia: “Te amo, papai. Obrigada, por tudo!”

Ao contrário do que seu Mundo imaginava, ler não era difícil, ou aflitivo, não requeria grande esforço. Uma vez que aprendeu já não conseguia mais deixar de fazê-lo ao observar quaisquer letras dispostas lado a lado sobre a superfície que fosse. Lia tão naturalmente quanto o próprio olhar. Lia para seu bel-prazer, para seus netos, para todo mundo.

E seu mundo agora beirava o infinito.

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