Pra a maioria das pessoas que acreditam em vampiro eu devo ser a lástima. Devem imaginar que sanguessugas chupam só pescoço de gente bonita, andam de capa esvoaçante em noite de névoa e frequentam os melhores bares e festas privilegiadas. Eu pertenço ao inverso das massas, tô na base da pirâmide, mas não é por falta de inteligência ou capacidade: a imortalidade te dá além do senso de poder ilimitado o tédio.
A imortalidade dá uma necessidade de realização em pequenos atos, já que os grandes – como o de ser megaempresário ou um superatleta – passam a ser tão interessantes quanto observar a grama crescer.
Qual a graça em ir e voltar nesse transito metropolitano maldito pra dirigir uma empresa com um bando de mortais que provavelmente tem uma rotina tão entediante como a sua? Minto: a rotina deles certamente é cinquenta vezes mais interessante que a sua, de burguesinho babaca. A falta de condições pra pagar ou não as contas no fim do mês é muito mais motivador que frequentar festas milionárias.
Provavelmente você deve me achar louco por dizer isso, mas “beber, transar e chupar sangue como se não houvesse amanhã” é justamente melancólico por sempre haver um amanhã, pra um vampiro.
Interagir com mortais passa a ser de primordial necessidade pra um morto-vivo porque somente eles tem a feliz vivência do inesperado, do urgente. É a inútil convivência com humanos, como se pudéssemos tragar um pouco desse inusitado, uma chama de esperança em voltarmos a ser surpreendidos que ainda existe sabe-se lá porquê. Como o fantasma, que viciado no cigarro, mas sem um corpo pra tragar a nicotina gruda-se a um vivo, tentando reviver a sensação do alcatrão.
A rosa só é bela porque um dia irá morrer. Presamos a urgência de sua beleza e vivacidade porque sabemos que suas pétalas murcharão com a decadência do tempo, até tornar-se adubo para uma nova rosa.
Muitos vampiros temem a morte por exporem-se à luz solar, alguns até a alho, cruz etc. Mas se estão entediados, por que não acabam logo com isso, não? Porque não é o natural. O medo do desconhecido também nos assombra. Se Deus existe mesmo, por qual motivo deixaria alguns de nós vagando por aí?
Não deve ser Sua obra. Provavelmente coisa do outro, do adversário. E ninguém quer passar a eternidade sendo queimado ou espetado por um cara de chifre e tanga vermelha, por mais que aqui seja um verdadeiro tédio. Ninguém quer se arriscar.
Nem eu. Por isso todo santo dia entro no Madureira Shopping antes do dia amanhecer e só saio quando o sol desce no horizonte. Já ouvi alguns dos nossos dizer que esse negócio de luz solar ser uma tremenda balela, mas sei lá. Meu tataravô dizia que o seguro morreu de velho, e ele morreu mesmo, senil. Arrumei uma desculpa de que tenho “alergia a Sol” dada por um outro amigo imortal, só que esse médico. Facilita muito minha quase vida.
E nesse vai e vem de dias mantenho-me em meu ofício, das dez da manhã até as sete da noite. Já tenho sete anos de casa e mais uns sete terei de mudar de estabelecimento. Não é muito fácil explicar pra pessoas comuns como não crio rugas, ou como meu cabelo curto não cresce. Para os mais chegados possuo trinta e dois anos e me chamo Fabiano – pelo menos em carteira, porque o original é Enzo. Já fui de família italiana próspera no ramo de flores e arranjos, mas antes mesmo de ser vampirizado já havia largado a terra natal. Sempre fui chegado à música brasileira e acabei vindo parar aqui.
Mais ou menos de dez em dez anos mudo de trabalho, pra não ficar muito na cara minha situação de morto-vivo. Já viu né? Pra não perder os direitos começo a faltar, fazer merda como todo bom brasileiro (não que precisem saber minha origem). Só que dessa vez é diferente, eu curto o que faço. Se sair daqui provavelmente vou insistir no ramo. Podia ser gerente do shopping, ou algum empresário – tenho tino comercial suficiente pra isso. Mas confesso que gosto de ser empregado. Não é masoquismo da minha parte, ou complexo de inferioridade, como muitos dos colegas de imortalidade já insinuaram. É que nesse ramo, ser chefe não é a mesma coisa: trabalhar numa sapataria e ser empregado é pôr a mão na massa. Isso aí, eu gosto de calçar os pés alheios, porque sou um completo fascinado por pés. Foda-se o chulé, aliás, se o pé for macio, sem muitas veias pode feder até carniça que me excita sexualmente.