As Tais Cartas do Título

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Tomei banho, peguei meus documentos TODOS e decidi passar pelo hospital, para depois ir até a delegacia. Sete anos enfrentando um câncer deveriam ser mais que suficientes para que eu soubesse avaliar melhor a força de Suzana. Como ao sair de casa ainda estava com o saco cheio de papel na mão, meti os documentos nele e rumei para encontrar minha irmã.

- Espero que tenha morrido na mesma hora, pelo menos. Não fala nada... você que vai atrás do enterro, de tudo?

- É.

- Hahaha!

- A Dona Val acabou de morrer e você tá rindo!

- Tô rindo de você e da sua cara. Não da Dona Val. Coitada. Você pede pro médico me deixar ir.

- Suzana...

- Eu vou. Você não quer que eu vá? Imagina se eu não vou!

- Não é que eu não queira... Você...

- Eu, o que?! Eu vou sim. Tô doente, não tô morta... Que que é isso aí?!

- Aaah... são meus documentos...

- Num saquinho de feira!! Você é a pessoa mais esculhambada que eu conheço! E esse monte de papel aí?

- Ah. – eu não podia contar à Suzana sobre o Grúmulo, porque caso isso não fosse capaz de curá-la, estaria dando falsas esperanças – É... alguém colocou na minha mão quando eu cheguei na rua, nem sei. Taquei os documentos aqui dentro e vim na hora... ainda tenho que ir pra delegacia, daqui.

- Deve ser alguma coisa da Dona Val. Você nem olhou! Abre pra gente ver.

Merda!

- Abre aí. Deixa eu ver.

Pronto. Ia abrir o saco, tirar as folhas de caderno e Suzana ia ver a letra do nosso pai, era isso. Enquanto abria e tirava as folhas, tentava imaginar uma desculpa – não precisava ser boa, apenas ter uma – para aquilo. Ia dizer que o Messias, no meio da confusão, me deu. Pronto!

- É a letra da Dona Val, mesmo.

- É?! – eu não sabia, e Suzana ter aparentemente adivinhado o que eram aqueles papéis, fez meu corpo inteiro ficar gelado.

- Uhum... ela que me ensinou a ler quando ainda não tinha prezinho lá no bairro. É a letra dela mesmo, e esse papel é bem velho. Olha como tá a tinta da caneta! Devem ter uns vinte anos essas folhas de caderno. Será que a gente pode ler? Parece umas cartas.

Cartas. Cartas da Dona Val no testamento do meu pai. A gente NÃO podia ler. Mas Suzana já estava lendo. Os olhos corriam depressa linha após linha, as sobrancelhas e a testa franziam cada vez mais e o rosto tornava-se mais e mais rígido. A cada palavra decifrada e registrada no cérebro, o corpo retesava-se, até o momento em que minha irmã pareceu sem dúvida alguma perturbada. Estava pálida e tremia. Os lábios ressecados e sem cor espremeram-se e eu corri para a porta e gritei por ajuda. Na volta, arranquei as cartas de sua mão e elas vieram para as minhas, rasgadas pela metade. Em lugar de tentar reavê-las, minha irmã curvou os joelhos sobre a cama, escondeu o rosto e chorou, soluçando violentamente. A equipe responsável por Suzana entrou, me expulsando do quarto. Foram apenas vinte minutos que para mim pareceram todos os anos que vivi até aqui.

Hora da morte dezesseis horas e dezessete minutos.

As vozes dos médicos, enfermeiros e atendentes do hospital passavam por mim como se estivessem muito distantes ou existissem apenas na minha cabeça. Explicavam que tantos anos de quimio e radioterapia inviabilizavam o transplante de qualquer dos órgãos de minha irmã, que o coração dela não tinha resistido às oscilações da pressão sanguínea, que eu precisava preencher tais e tais formulários, assinar aqui, aqui e aqui. Eu não podia e nem queria ir para casa. Não sei se pedi autorização de alguém, ou simplesmente me sentei na sala de espera reservada aos familiares e fiquei por ali mesmo. Vinte e sete mensagens no Whatsapp e oito chamadas no celular. Ninguém na rua sabia sobre minha irmã, queriam notícias sobre o enterro de Dona Val. Dois enterros. Três enterros. Dali poucos dias eu poderia dizer que enterrei três pessoas.

Em algum momento da letargia, peguei as cartas rasgadas dentro do saquinho plástico e comecei a ler. Eram para o meu pai. Imaginei que tivesse escolhido como seu testamento, porque explicavam tudo sobre como minha mãe fora morta por um garoto três ou quatro anos mais velho que meu irmão. Por motivo nenhum, exceto porque ele precisava matar alguém para ser aceito numa quadrilha. Uma quadrilha que – eu não sabia – supostamente agregava meu irmão, motivo pelo qual ele foi morto pelo meu pai dois anos depois. Eu não lembrava bem da morte de minha mãe, tinha apenas cinco anos, e na verdade, nem me importava muito. Meu coração palpitou. Minha cabeça parecia querer explodir. Eram vinte e três cartas e arrisco dizer que Dona Val entregou ou passou por debaixo de nossa porta, uma por dia até que a polícia parou de investigar a morte de meu irmão – quando ele finalmente foi enterrado. Não sei dizer se o tom era de ameaça ou chantagem, mas nossa vizinha alegava naqueles pedaços de papel ter testemunhado tudo, e advogava pelo meu irmão, declarando que nosso pai tinha se confundido e matado o próprio filho sem motivo.

Parte do que eu e Suzana lemos naquele dia fora a confissão que meu pai me fizera, e que escondi de minha irmã estes anos todos. Mas sua confissão não incluía a morte de minha mãe e nem falava sobre a quadrilha. Era apenas "quem matou seu irmão fui eu." Tive um sobressalto e me dei conta de que os ônibus parariam de circular e o metrô e o trem fechariam as portas. Onze e treze. Conversei com os funcionários do hospital: voltaria na primeira hora, pela manhã. Quanto a morte de Dona Val, iria à delegacia logo após. Era isso, pegar o ônibus, depois o trem e encarar a casa vazia para sempre.

Nacompanhia silenciosa da noite, lembrei-me da pedra e concluí, depois de pensarum pouco, que o pedido de meu pai fora livrar-se da investigação da polícia. Aconsciência pesada deve tê-lo impedido de queimar as cartas - e nem resolveria, já que Dona Val estava alibem viva, morando na casa da esquina – logo, sua intenção ao colocar as cartasdentro do parapeito da janela na casa da Rua Sergipe, era escondê-las e não preserva-laspara quem herdasse o Grúmulo. Pensar no assunto causou-me essa sensação tãoforte de que nada era coincidência, tudo fora desencadeado por ele. Não eraapenas obra do acaso ter conversado com a pedra, pedindo pela restauração deminha irmã, receber orientações para encontrar as cartas de Dona Val, e emseguida, chegando em casa, encontra-la morta, para então, na sequência, estascartas serem lidas por Suzana e seu conteúdo levarem-na a morte. Não. Mas eusabia que o Grúmulo cabia na palma de minha mão e era impossível esmigalha-locom minhas forças. Assim sendo, depois de passar pela rua silenciosa e triste,enfrentei a morbidez que impregnava minha casa, a loucura no ar do quarto decostura de minha mãe e tomei em minha enfurecida mão direita, o obsceno edesdenhoso Grúmulo, atirando-o pela janela o mais longe que a fúria de meubraço podia, desejando com toda convicção que na rua fosse tomado por um seixoqualquer e ignorado pelos que passassem para todo sempre.     

Um Banquete na Terça e Um Maço de CartasWhere stories live. Discover now