O Conde

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Nada disto me afeta mais. O passar dos anos, do tempo, as suas guerras e horrores, tudo isto é nada. Eu sou parte do horror.

Habituei-me à solidão que nenhuma companhia apazigua. Já não me oprime a falta da luz do sol nesta cidade hoje encoberta por cinzas e fumaça. As sirenes não se silenciam nesta Manhattan onde destinos se cruzam e se perdem. Como invejo os que morrem e conhecem o fim, eu que estarei aqui para ver muitos morrerem e serem esquecidos.

Os dez anos nesta cidade foram como um piscar de olhos. Fugindo de mim mesmo, do meu passado, do meu sofrimento, do meu pecado. É o que tenho feito por tanto tempo. Ainda hoje, muitos querem pôr suas mãos em mim, muitos ainda acreditam que estou vivo e perambulando pelas vielas e becos das metrópoles do mundo. Estão certo. Londres, Paris, Viena, Roma e Madri. Nova York. Deixando atrás de mim um rastro de sangue e morte. Não posso evitar, pois isto se tornou uma parte da minha natureza. Amaldiçoado por Deus sou.

A torre que hoje habito, na qual me escondo, na qual repouso nestes dias sem fim, é muito diferente daquela da minha terra longínqua da qual tanto sinto falta e cujo solo me fortalece, pela qual lutei com estas minhas próprias mãos contra os invasores bárbaros. Sou um herói renegado, que consta nos livros de história e nos romances. Sou um monstro, uma aberração. Se dissesse quem sou, não me creriam. Dentre todas as pessoas célebres ao meu redor nas festas da elite para as quais sempre insistem em me convidar como o exemplar exótico de uma finada aristrocracia europeia, sou o único verdadeiramente memorável. Todos os demais são sombras fugidias cujas vidas não são sequer o cintilar de uma vela que se apaga. Vermes insignificantes digladiando-se por efêmeras vitórias. Incapazes até de vislumbrar o terrível estrago da ferrugem da eternidade. Tudo se corrompe, até as almas supostamente imortais.

Eu a conheci ontem numa destas festas. Recordava-me alguém, porém, dentre a infinda multidão de feições sobre as quais meus olhos um dia pousaram, como identificar a quem se assemelhava? Talvez Mina, mas, recentemente, seus traços começaram a me escapar. Lembrava-me de sua voz melodiosa e de seu toque delicado, mas como eram os seus olhos, o seu penteado, o contorno de seus lábios? Se ao menos houvesse me restado uma fotografia dela para reacender em mim sua memória.

Não creio em metempsicose, embora, ocasionalmente, isto soa como uma explanação plausível. Seria uma tênue alegria em minha existência a certeza de reencontrar um dia aquela que amei.

Invitei-a para a minha morada, trazendo-a pelo braço pelos corredores até a alcova.

Havia temor e resistência no modo como ela receosamente se deixava levar. Talvez soubesse ou intuísse o seu destino.

Diante do meu leito, do ataúde repleto de solo da minha saudosa terra natal, ela, boaquiaberta, pupilas dilatadas, coração acelerado e ofegando, enfim indagou, já intuindo a resposta.

Mas quem é você?

Então, aproximando os meus lábios de seu ouvido, sussurrei.

Vlad. Vlad Drácula.

E resfestelei-me com o líquido rubro que vertia de seu pescoço entre os meus dentes, sua vida esvaindo-se entre meus braços imorredouros.

Coigniéres, 2017

O CondeWhere stories live. Discover now