A última ceia

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            Pensei em fazer um coque frouxo e ir ao Starbucks (afinal, é assim que as histórias no wattpad começam, não é?), mas o meu cabelo era demasiado curto. Além disso, não havia Starbucks aqui no hospital psiquiátrico. Quer dizer, sabia que havia algumas lojas por aí espalhadas em Lisboa. Porém, ouvi dizer que um dos designs dos copos tem umas árvores natalícias. E isso traria más memórias.

Vai fazer um ano que me tentei enforcar no pinheiro de Natal. Pensei que o facto de ser tão baixa faria o meu sucesso. Todavia, quando acordei, não estava rodeada pelas chamas do inferno como esperava; mas sim por paredes de cimento, por cheiro a desinfetante. Já me tentei cortar duas vezes, a lâmina a dançar no meu braço, mas acho que não tenho talento para o suicídio. Acabei por desistir.

É hoje que vou ter alta. Vai ser a primeira vez que verei meu marido e as minhas duas filhas, após aquele dia. Nunca me foram visitar, mas convidaram-me para passar a noite da véspera com eles. Será que me vão perdoar pelo que fiz, ou será esta a nossa última ceia?

O ponteiro marcava as oito horas quando Edgar me abriu a porta. Cumprimentei-o. Novo perfume?

- Olá Carol. - beijou-me a testa. - Bem-vinda de volta. Abracei-o, as mãos ásperas sobre o meu rosto, e ele convidou-me para entrar. Tentei não olhar para o pinheiro reluzente no hall de entrada. Era a minha última oportunidade, e eu não queria estragar tudo. No corredor, a pequena Eva já me esperava, o uniforme de escuteira ainda posto. Correu até mim.

- Mamã! Pensei que nunca mais ias voltar depois do que aconteceu. - agarrou-me pela cintura.

Virei-me para Edgar.

- Contaste-lhe?

- Lamento, Carol. - Edgar poisou-me a mão no ombro. - Ela é uma miúda esperta, mesmo para quem tem oito anos. Não precisa que lhe digamos essas coisas. Eva, o que é isso?

Edgar tirou-lhe um enorme canivete do bolso.

- Desculpa papá. - corou. - a líder do acampamento emprestou-ma, para cortar uns troncos. Esqueci-me de lhe devolver.

- Está bem. Mas vou falar com a Patrícia, para confirmar essa história.

Eva anuiu e saltitou até ao quarto.

- E a Diana? Como é que ela está?

- Não sei. Não costumamos falar sobre isso.

Bati à porta do quarto da minha filha. Na maçaneta, um aviso de não incomodar. Do lado de dentro, música aos gritos. Senti-me um pouco nostálgica, pois também costumava fazer isso aos dezasseis anos. A música parou, e a porta rangeu.

- Tu aqui?! - olhou-me de alto a baixo.

- Olá filha. Voltei.

- Vai-te embora. - bateu com a porta.

Senti-me como se tivesse levado um murro no estômago. Quando o tentei fazer há um ano atrás, nunca pensei nos efeitos que isso teria nas outras pessoas.

Algum tempo depois, Edgar serviu o bacalhau, e todos nos sentámos à mesa. Tinha saudades da sua comida. Sempre foi melhor cozinheiro que eu. Na estante, um baú de madeira.

- É novo? - perguntei.

- Sempre esteve aqui. - Diana regou as batatas com um fio de azeite. - Tu é que nunca reparas em nada.

- Filha. - Edgar agarrou-lhe a mão, olhando-a nos olhos. - Não sejas assim com a tua mãe.

- Depois do que ela nos fez? - libertou-se da mão dele. Naquele momento, quis lhe dizer o quanto a amava, o quanto lamentava ter tentado abandoná-la. Mas tudo o que consegui foi permanecer calada, levar à boca mais uma garfada de bacalhau.

- Já falámos sobre isso, Diana. - continuou ele. - a culpa disto foi toda minha, e não da tua mãe.

E não se falou mais no assunto. Ajudei-o a trazer as rabanadas, as filhoses, o arroz doce. A pequena Eva contou-me tudo sobre as suas aventuras como escuteira. Fingia que ouvia, quando na verdade os meus pensamentos continuavam fixos naquele baú. Onde é que eu vi isto antes onde é que eu vi isto antes Onde é que eu vi isto antes

Ding- dong! Edgar levantou-se da mesa, pegando no canivete.

- Deve ser a Patrícia. Já volto. - beijou-me na bochecha e saiu, os passos a trotearem pelas escadas abaixo.

- Então Diana? Como tem andado a escola? - perguntei-lhe.

Ela deu uma gargalhada.

- Como tu és patética... Achas mesmo que me vais recuperar assim? - abanou a cabeça. - E já agora, ela é melhor do que tu alguma vez serás, ouviste?

- Ela quem?

- Vê por ti, lá em baixo.

Arrastei a cadeira e corri para o hall de entrada. À porta, a mesma visão que me assombrara há um ano: o meu marido a beijar Patrícia, as mãos a apertarem-lhe as ancas roliças, o soar da brisa gelada de Inverno.

Essa era a realidade: outra mulher tinha tomado o meu lugar como mãe, amante, esposa. Peguei numa corda de vime, fiz um nó. Subi a um escadote, e pendurei-a no topo da árvore. Prendi- a ao pescoço, deixei-me cair. O escadote tombou.

Sim, aquela seria a nossa última ceia.

********

- Carol? Carol? - a enfermeira encheu-me um copo de água. Paredes de cimento. Cheiro a desinfetante. Falhei novamente. - Tens de tomar os medicamentos, sim?

Sentei-me na cama e agarrei os comprimidos. Vanessa, a minha colega de quarto esquizofrénica, ria-se de mim.

- Ontem ficaste toda maluca, hã?

- Cala-te Vanessa. - disse. Virei-me para a enfermeira. - Do que é que ela está a falar?

- Ontem perguntaste por este baú, que costuma estar aqui. - retirou-o da estante, abrindo-o. Desdobrou um jornal todo amachucado, alisando-o sobre a mesa. A negrito, a manchete: «Mulher psicótica assassina a família e tenta enforcar-se no pinheiro de Natal, ao descobrir que o marido tinha uma amante.» - Lembras-te do que aconteceu há um ano atrás?


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