Um afago na rua sombria

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Não sei quanto tempo vagava ansiosamente por aquela rua, a procura de um abrigo quente e seco para mim. Eram noites frias, afinal, nasci em uma época que o tempo não era tão favorável para nenhum de nós, variando de quente para frio em uma fração de segundo.

Minha mãe e meus três irmãos tinham sumido na noite anterior. Já fazia um tempo que eu os procurava incansavelmente onde a gente morava antes, mas não os achava mais. Disseram que iam procurar um lugar bom para nós. Talvez, tenha sido por isso que permaneci naquela rua escura e assustadora completamente só.

Com o tempo, aquela situação começou a me dar um medo terrível. Será que voltariam para junto de mim? Será que tinha acontecido alguma coisa com eles? Eu deveria ir procurá-los antes que seja tarde demais? Sim... É uma boa ideia, precisava achá-los, podiam precisar de mim.

Após essa decisão, lancei-me pela rua escura e erma sozinho. Escondendo-me entre os carros e ficando quieto quando ouvia algum barulho suspeito. Passei a maior parte da noite fazendo isso, contudo, algumas pessoas más passavam e me maltratavam, assustando-me com seus veículos barulhentos e seus jeitos rudes.

Algumas delas me evitavam, por eu está sujo, ou fedido. Outras pediam para eu desaparecer e algumas simplesmente ignoravam a minha existência, como se eu não existisse nesse mundo. Dessa forma, quando reparei, ainda estava naquela rua longa e assustadora.

Sozinho.

Ela começou a ficar interminável para mim, pois mesmo que eu tentasse sair dela quase todos os dias para procurar minha família, sempre acabava no mesmo lugar que comecei. Assim, chorava muito, chamava por eles, contudo, nenhum deles vinha até mim.

Ninguém aparecia para me ajudar.

Aos poucos, a missão de ir atrás deles, começou a se tornar inviável. Estava faminto e sedento e a imagem da minha mãe e dos meus irmãos tornou-se turva e cinzenta, como a minha própria cor. Mesmo que a esperança de vê-los ainda vivesse na minha alma, meus pés e mãos estavam exaustos demais para andar e o temor daquela gente grande e assustadora, deixava-me ainda mais apavorado para continuar minha busca.

Só que não ia desistir.

Planejei muito bem meus passos, observei os momentos em que as pessoas e os carros diminuíam mais naquele lugar e depois de alguns dias, encontrei o melhor momento para sair do meu esconderijo e ir atrás deles novamente.

Quando o momento enfim chegou, bebi algo estranho que encontrei perto de onde estava e me lancei ao desconhecido, tomando cuidado com qualquer forma estranha que encontrava. Depois de algumas horas caminhando meus pés doíam, entretanto, finalmente, consegui sair daquela rua.

Dessa maneira, procurei-os pelos locais próximos, sendo cauteloso e discreto. Encontrei, com isso, outros iguais a mim. A grande maioria deles não tinha visto minha família, contudo, um deles tinha me dito que os viu andando algumas quadras de onde eu estava naquele instante.

Animei-me com essa notícia e segui ansioso para o local onde tinha me indicado, depois que ele dividiu um pouco da comida que tinha comigo. Andei mais um tempo e notei que finalmente tinha chegado ao local correto, pois vi, ao fundo de um terreno, as silhuetas da minha mãe e dos meus irmãos deitados no chão.

Corri até eles, gritando seus nomes, chamando por eles. Não acreditava que finalmente poderia encontrá-los depois de tanto sofrimento, solidão e dor. Até que fim nós poderíamos ficar juntos de novo. Aproximei-me já me jogando entre eles, cheio de alegrias.

Só que nenhum deles se mexeu.

Chamei seus nomes e toquei com minhas mãos doloridas em seus corpos. Só que eles estavam frios e quietos como pedras. Os carros e as árvores das ruas se mexiam muito mais que eles.

Afastei-me assustado, quando vi os pequenos ferimentos cheios de algo vermelho em seus corpos. As lágrimas vieram ao meu rosto inconscientemente e gritei como se estivesse completamente só no mundo.

O que era a mais dura verdade.

Passei a noite fungando ao lado dos seus corpos estáticos, aproveitando os últimos momentos que poderia ter com eles. Imaginando os momentos de calor, afago e alegria que passamos juntos em um passado não tão distante assim.

Quando amanheceu e os primeiros raios de sol surgiram, um grupo de indivíduos apareceu pegando o lixo e jogando em um caminhão grande e medonho. Ao se aproximarem de nós, acabei correndo e me escondendo apavorado e de onde fiquei os vi jogando no caminhão o que restou da minha família.

Gritei para que parassem, porém era tarde demais. O caminhão monstruoso os engoliu sem piedade alguma. E aquela seria a última vez que eu veria seus rostos.

Passei o dia ali, chorando e de noite, ao sentir a fome e o cansaço fazerem tudo ficar ainda pior, resolvi que voltaria para a rua onde tudo começou. Não fazia sentido permanecer ali. Não fazia sentido sonhar com algo que nunca terei novamente: uma família.

Cheguei ao início da noite na rua sombria. Minhas perninhas não aguentavam mais tudo aquilo. Minha alma tinha se partido no meio. E o medo me consumia inteiramente.

Só que acabei aparecendo lá no momento mais movimentado, os carros e pessoas se amontoavam na rua, que agora se tornava mais temerosa que tudo. Quando vi uma daquelas pessoas se aproximar, corri gritando para debaixo de um carro o mais rápido que consegui, só que ela resolveu vir atrás de mim e ameaçou me pegar.

O que iria fazer? Não queria morrer como a minha família. Assim, quando conseguiu me puxar, mordi sua mão e corri para dentro de um prédio, ficando escondido atrás de umas plantas altas. De onde fiquei percebi que o homem não conseguia entrar, mas, com o passar do tempo, algumas outras pessoas apareceram. Eram três no total.

Falavam coisas que não entendia muito bem, só que começaram a jogar comida para mim. Estava com tanto medo, porém com tanta fome, que me aproximava para buscar a comida e a qualquer movimento suspeito saia correndo para ficar atrás das plantas de novo. De repente, a moça começou a chamar alguém de dentro do prédio e um senhor apareceu bem perto de mim.

Lancei-me loucamente para dentro de mais um carro, agora, dentro do prédio, lá fiquei observando aquelas pessoas que tentavam me cercar de todos os lados, jogando comida para mim e tentando me pegar. Tive medo. Muito medo e cada vez mais ficava longe delas.

E assim, depois de todo o pânico que senti; tudo se aquietou. Vi que se distanciaram, mas deixaram comida e água limpas para mim. E antes que eles sumissem da minha vista, vi que falavam de outros como eu. Falavam que tinham outros como eu em suas casas, em suas famílias e vi o olhar pesaroso deles para mim, entre os mecanismos feios daquele carro onde ficara. Pensei em ir até eles, só que não consegui.

Tudo em mim tremia compulsivamente.

Em outros dias, os vi passando por ali. Aquelas mesmas pessoas que pareciam diferentes de todas as outras que já tinham passado naquela rua sombria e solitária. E todos os dias pensei em ir até eles. Só que tinha algo de errado comigo, minhas pernas e braços não estavam bons mais e meu estômago doía profundamente, deixando-me quieto e sem vontade de viver. Contudo, um dia tomei coragem, mesmo me sentindo assim e sai para procurar qualquer uma daquelas três pessoas.

E depois de alguns passos doloridos, não senti mais nada.

Entretanto, assim que percebi os primeiros raios de sol tocarem meus pelos cinza claros, minhas orelhas pontudas e meus bigodes sujos, vi algo próximo a mim. Abri meus olhos pela última vez e vi a moça que tentou me pegar aquele dia. Com a mesma expressão pesarosa de quando me deixou para trás.

Ela fez um afago em mim, um calor que fazia muito tempo que não sentia mais naquela rua escura, que agora estava clara como o céu azul. Será que o céu era assim mesmo? Sorri e pude sentir a minha família novamente, como se ela nunca tivesse ido embora.

Talvez ela nunca tivesse ido mesmo. 

Um afago na rua sombriaWhere stories live. Discover now