Sairia sozinha, apesar da hora. As ruas, geralmente barulhentas e povoadas, certamente estariam vazias. Sendo véspera de Natal, os moradores do vilarejo estariam todos em casa, ceando com suas famílias. Não sabia que horas poderiam ser, mas rezava que ainda fosse cedo. Andava apressada e apreensiva, olhando constantemente em volta, pois naquela época do ano, junto com as nevascas inesperadas vinham também os coiotes, que pareciam sempre maiores e mais famintos cada vez que os via espreitando pelo bosque. Ao sair, certificara-se de que as crianças estavam bem, deixando-as distraídas, brincando junto à pequena fogueira.
Aquela era uma vida que jamais havia desejado. Em questão de poucos meses, perdeu tudo o que possuía. O marido, vendedor de frutas, que os havia sustentado, mesmo que com dificuldades, por um bom tempo, havia sido morto pelos guardas do vilarejo, que o julgavam um homem estranho e perigoso. Sem dinheiro para continuar sustentando seus quatro filhos, a viúva tornou-se vendedora de gravetos; um serviço ingrato, que lhe custava às vezes dias fora de casa, e o pouco retorno financeiro condenou os cinco a uma vida de extrema penúria.
Durante o novembro inteiro, havia lutado para conseguir comida. A casa onde morava havia sido enormemente danificada por uma nevasca no fim de outubro, que além de expor a família a várias noites de frio intenso, havia levado embora o estoque de lenha que guardara para vender durante duas semanas. Por várias vezes se perguntava como ainda permanecia viva. Outras vezes, se valia a pena seguir vivendo. Os moradores da vila, sempre que a viam, lançavam-lhe um olhar de desprezo, e quando não a escorraçavam, pagavam o mínimo possível pela lenha que oferecia. O que havia de tão horrível em sua aparência, afinal? Provavelmente não era tão repulsiva assim, mas nunca saberia, já que só os habitantes de cidades ricas possuíam bons espelhos. Dizem que a pobreza deforma o rosto, e talvez esse fosse seu caso.
Contudo nada havia sido tão ruim como dezembro. As árvores do bosque, congeladas, quase não a permitiam extrair gravetos; e tudo se complicava ainda mais considerando os braços finos e enfraquecidos que tinha. O dinheiro reduzira-se a quase nada, e o alimento, com ele. Por vezes, as crianças mal tinham energia para brincar, de tão mal nutridas. Aquela condição miserável partira seu coração, e prometera a si mesma que comeriam como nunca quando chegasse o Natal.
O desesperador Natal havia chegado, e com ele o frio, os coiotes, e o fantasma de uma promessa silenciosa, ainda não cumprida. Apesar do tempo estar se esgotando, estava decidida a dar a seus filhos o banquete que mereciam. A vida era injusta e Deus parecia encolher-se cada vez mais em seu cruel silêncio. Esperava ela que pelo menos Ele a ajudasse a se manter escondida de olhares indiscretos e a salvo dos coiotes e dos guardas.
A noite estava escura, sem lua; os únicos sons que ouvia eram o do vento frio e o de seus próprios passos. A estrada tortuosa estava coberta de neve, e ladeada por grandes árvores retorcidas e sombrias. O fogo da lamparina que carregava, dançava agonizante, e as moedas em sua bolsa tilintavam tímidas. Abrindo os olhos com dificuldade, avistou ao longe as luzes do vilarejo. Seus lábios se curvaram num sorriso de alívio e ela apertou o passo, apesar das pernas dormentes. Sua expectativa era de encontrar alguma pequena loja aberta, onde compraria alguma carne e vinho para a ceia. As crianças não podiam esperar muito; em breve o pequeno fogo se apagaria. Encolhidas de frio, elas seriam presa fácil para qualquer animal que passasse pelos arredores.
O caminho se abriu um pouco mais e ela avistou as construções tímidas da vila. A iluminação era fraca, mas à medida que se aproximava podia sentir o cheiro das refeições e a energia alegre que vinha daquelas casas. Seu pequeno sorriso de alívio transformou-se numa pura expressão de satisfação, enquanto imaginava uma linda festa natalícia com seus filhos algumas horas mais tarde.
Mas sua alegria durou pouco. O sino da igreja badalou a meia noite. Sua alma retorceu-se de agonia. Era muito tarde para uma ceia de véspera de Natal. O dia já era outro e sua promessa não havia sido cumprida. A imagem dos filhos encolhidos diante de uma minúscula faísca de fogo e estraçalhados pelos coiotes cortou-lhe a mente como uma faca. O desespero apertou seu coração, e certamente suas premonições teriam se realizado se não tivesse avistado a distância, um andarilho dobrando a esquina.
Era um homem, tinha certeza, apesar de só distinguir sua sombra. Seus planos mudaram repentinamente, pois a oportunidade secreta que a esperara por tanto tempo desde a morte do marido, havia aparecido diante de seus olhos. Tentando não causar alarde, escondeu-se atrás de uma árvore, prendeu a respiração e aguardou, silenciosa, a aproximação do estranho.
Certificando-se de estar bastante próxima, retirou de sua bolsa a machadinha que havia trazido por precaução, e desferiu um golpe certeiro no crânio do homem, que com um gemido desajeitado, caiu sobre a neve. Aproximando-se devagar, ela olhou em volta para se assegurar de não ter sido vista por ninguém. Faminta, seu estômago se revolvia de desejo, enquanto sua boca salivava de expectativas. Havia conseguido.
Arrastou o cadáver para detrás de uma das árvores, e rapidamente, cortou-lhe fora a cabeça. Apesar do medo de um flagrante, e da pressa em voltar pra casa, conseguia saborear aquele serviço, cujo processo seu marido havia lhe ensinado diversas vezes. Costumava reagir com repulsa àquilo, apesar de saber que era o meio mais eficaz para sua sobrevivência. Sua machadinha era ineficiente, mas a fervura em seu sangue a fez desmembrar o corpo em questão de minutos. Convicta de que não precisaria mais trabalhar para alimentar com abundância os filhos, percebeu que teria de ensinar a eles aquele ofício quando fosse oportuno. Mas por hora, estava aliviada por conseguir pelo menos um banquete de Natal. Enfiou os pedaços do cadáver em sua bolsa e retornou satisfeita e apressada ao lar.
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Banquete (Um conto de Natal)
Mystery / ThrillerÉ noite de neve, véspera de Natal. Na estrada escura, uma mulher caminha sozinha e apressada. Carregando uma lamparina, um pouco de dinheiro, e torturada por lembranças e pelo pouco tempo que lhe resta, ela parte decidida a cumprir uma promessa que...