O limpador de janelas; ou o menino-bicho

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Eu queria ser livre. Poder olhar a natureza e aproveitar o tom de verde que só as árvores fornecem com tanta precisão. Contrastando com o marrom dos troncos e galhos. Tom sobre tom perfeito. Acho que é isso que essa expressão queria dizer. Nada mais natural que usar a combinação mais patética e que deu mais certo. Tom sobre tom. Só a natureza sabe fazer.

Queria poder ver os animais em seus habitats. Ver os pássaros voando. E pousando suas patas sobre os galhos, não para descansá-las, mas para descansar as asas. Queria pegar a mais alta fruta, direto do pé e comer em cima da árvore. Queria, como o beija-flor, beber água enquanto pairo no ar. Num movimento leve. Uma pose natural e bem mais bonita do que qualquer pose, de qualquer modelo.

Todo animal é capaz de amar, não só o cachorro, inclusive o ser humano. Acredito, inclusive, que as plantas também amam. Eu não faço distinção entre amores. Se é amor, é bem-vindo! Prefiro o carinho dos animais, exceto do ser humano. Eles não me cobram coisa alguma, senão amá-los. E o sentimento é sempre recíproco quando me relaciono com eles.

Quando eu era criança, os meninos zombavam de mim, me apelidaram de Tarzan. Até minha própria mãe ria de mim. Mas, sinceramente, eu não conseguia entender como aquelas crianças se divertiam tanto brincando com coisas tão tolas. E brigando, entre uma brincadeira e outra. Eu só queria brincar de voar. Eu queria poder voar com os pássaros. Eu queria poder pegar piolhos nos macacos. Eu queria dar, ou receber um banho seco de lambidas de felinos, apesar de não ter a língua igual. Eu via sentido em cada gesto e ação dos animais. Gostava de observá-los, nem que fosse pela televisão. Preferia que fosse pessoalmente, cara-a-cara com o bicho. Observar o jeito, seus costumes. Eu gostaria mais de viver com os bichos.

Minha infância foi o período mais feliz da minha vida. Meus avós maternos tinham um sítio, para onde eu ia nas minhas férias da escola. Perto dali, era possível ver uma grande variedade de bichos. Meus avós sempre me levavam. Eles tinham a percepção melhor que a minha. Eu pensava que era porque tinham aquilo perto deles e desfrutavam de mais tempo com aquele clima. Depois eu percebi que tudo era uma questão de deixar a natureza nos envolver. Não era algo que se aprendia com alguém. Era uma meditação solitária, tal como, quase, todas as minhas ações. Quando minha vó não ia comigo e com meu avô, meu avô me levava mais mata adentro do que ela julgava permitido. Ficávamos horas a fio, apenas, olhando a mata e os bichos. Sem trocar sequer uma palavra, deixando o silêncio tomar conta. O silêncio do barulho da natureza e dos animais em seus devidos lugares. Um silêncio barulhento e mágico. Quando voltávamos já estava escuro e meu avô arrumava alguma desculpa para minha avó, para não dizer que ficamos até o entardecer no meio da mata. Tive essa experiência maravilhosa de envolvimento com a natureza, por alguns bons anos. Minha mãe dizia que na adolescência meus divertimentos seriam outros, que eu faria amigos e não iria mais dar atenção aos meus avós que já estavam bem velhos. Até meus treze anos de idade, nada mudou. E acredito que nada fosse mudar dali para minha velhice. Mas mudou. Não mudou, exatamente, por minha vontade. Quando eu tinha meus treze anos, meu avô morreu de alguma doença que desconheço.  Dois meses depois foi a vez da minha avó. Eu nem tinha me recuperado do meu luto. Apesar de já ter idade suficiente pra entender as coisas da vida, eu não compreendi porque aquilo acontecera com as pessoas que eu mais amava. Até hoje não sei qual foi a causa da morte, nem do meu avô, nem da minha avó. Alguns meses depois da morte, minha mãe e meus tios venderam o sítio. Não pude me despedir de nada. Tudo me foi arrancado tão de repente, me pegando de súbito e mais uma vez eu estava de luto. Tudo que me restou foram as memórias da melhor parte da minha vida. E isso ninguém poderia arrancar de mim.

Não me lembro muito bem do restante da minha adolescência. É como se tudo tivesse sido bloqueado pelo meu cérebro para evitar que eu lembrasse os tempos sombrios. Minha mãe conta que eu só fazia as obrigações impostas, como ir à escola e, eventualmente, algum trabalho doméstico, ou um pedido para que eu fosse até o mercadinho da esquina buscar algo. O resto do tempo, eu passava deitado, lendo ou assistindo algum programa sobre bichos, conta ela. Deve ser por isso que sei muito sobre animais. Espécies, costumes, habitats entre outras coisas. Não me recordo do tempo que passei lendo, ou assistindo. Mas o conhecimento está todo dentro da minha cabeça. Todo mundo ainda achava estranho como eu que tinha as melhores notas, não só da sala, mas da escola, em biologia, não conseguia aprender as outras matérias. Equação de segundo grau, eu não sei até hoje, nem mesmo tenho ideia pra que serve essa coisa.

Minha mãe julgava que eu era um garoto bobo, por ser calado. E, ainda, pensava que outros garotos pudessem se aproveitar de mim, ou me bater. Talvez, eu fosse, realmente, bobo. Mas sabia que ninguém iria se aproveitar de mim, pois, eu nunca permitia que qualquer pessoa se aproximasse muito. Eu evitava todo tipo de contato humano. Sei disso porque agi assim desde a infância. E continuo agindo.

Não fiz faculdade, nem sequer prestei vestibular. Usei a desculpa que eu não passaria no vestibular, porque a única matéria que eu sabia era biologia. Na verdade, eu não conseguiria ir pra uma faculdade e suportar as mesmas pessoas chatas, ou outras tanto quanto as da época da escola. A verdade é que nenhum ser humano, jamais, conseguiu me interessar.

Por essa posição e, também, pelo emprego que escolhi, minha mãe não me apoiou e tive de ir morar em outro lugar. A situação dentro da casa de minha mãe se tornou insuportável. Ela não aceitava o fato do filho não querer fazer faculdade e trabalhar como limpador de janelas. “Isso não dá futuro pra ninguém”, dizia ela. Eu até gostaria de cursar biologia, zoologia, ou veterinária. Depois de um tempo, tomei conhecimento do ensino a distância. Eu teria um diploma e estudaria o que eu gostava, além, é claro, de não ter de conviver com pessoas. Mas, infelizmente, meu salário era baixo e eu tinha o valor do aluguel. No fim do mês, mal tinha dinheiro para me alimentar.

Não pensava em trocar de trabalho. Eu gostava de trabalhar com isso. Apesar de não me ver realizado na profissão, mas isso, talvez, aconteceria em qualquer outra profissão. Trabalhar pra sobreviver era algo que eu não conseguia entender. Eu gostava de trabalhar nos prédios mais altos. Ficar pendurado por uma corda e pensar que eu estava voando. Via a cidade toda, como um pássaro que vê tudo de cima. Às vezes, meus companheiros de trabalho precisavam chamar minha atenção, ao me verem parado, olhando a cidade, durante alguns minutos.

Cada dia mais em que eu trabalhava nisso, ficava convicto de que eu podia voar. Eu saia do trabalho ansioso pelo próximo dia de serviço. Para me pendurar novamente nos lugares mais altos e me sentir como um pássaro novamente. Não tinha nada a ver com o fato do trabalho em si. Era apenas essa sensação que ele me proporcionava por me deixar voar.

Aos poucos foi voltando à mesma sensação que eu tinha quando criança, no meio da mata. Sentia-me parte da natureza. Meditava e algo me dizia que ali era o meu lugar. O mais perto possível do voo dos pássaros. Aquele era o meu lugar. O lugar perfeito. Minha vida não era o que eu tinha esperado pra ela. Mas eu estava onde deveria estar. Em mais um dia comum de trabalho, fomos apenas eu e mais uma pessoa terminar de limpar as janelas do prédio mais alto da cidade. Aquele dia, cada um ficou em uma extremidade do prédio e ele não pôde chamar minha atenção quando meditei, me sentindo parte do mundo, da natureza. Mas daquela vez, foi diferente. O dia estava cinza. A cidade estava cinza. Quase não existia mais o verde das árvores. Era uma selva, sim. Mas era uma selva de pedra. Quase não tínhamos animais em nossa cidade, exceto pelos passarinhos que passavam e que deveriam estar indo pra outro lugar. Algum outro lugar que tivesse árvores e galhos, para que pousassem suas pernas e descansassem suas asas. Longe daquele lugar cinza. E, agora, eu também queria estar longe. Também, queria voar com eles para outro lugar. Vi de perto algumas aves passarem voando, bem perto mesmo, senti a brisa do bater das asas das aves. Num impulso tão rápido, quis voar com elas. Soltei o cinto que me prendia e voei com os pássaros. Voei com eles por alguns segundos. E esse... esse foi o melhor momento em toda minha vida.

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O limpador de janelas; ou o menino-bichoOnde histórias criam vida. Descubra agora