Palavra do dia 17/07/2016: Chuva.
Chovia muito naquela fatídica noite.
As gotas de chuva rasgavam os céus como milhões de canivetes, cujas lâminas tremeluziam sob a luz dos raios e relâmpagos, que caíam iluminando o cenário de desgraça que estava por vir.
No beiral da ponte, encarando o abismo estava um homem, descrente da vida, parecia, prestes a dar um fim ao seu sofrimento. Seu nome? Ele dizia ser Troy. As roupas estavam obviamente ensopadas, a mão que segurava o ferro da coluna da ponte pingava como um cano furado, os cabelos caíam-lhe sobre a face, tapando-lhe os olhos que já eram tão cansados, que nem pareciam os de um homem na altura de seus trinta anos.
O homem olhou para o precipício e o mesmo o encarou de volta, as águas do rio abaixo, agitavam-se, preparadas para levar sem piedade qualquer coisa que se pudesse em seu caminho. As pernas se arquearam, os músculos contraíram-se, preparando-se para o salto. A visão se apertou, confusa devido a água, os flashes dos relâmpagos e a escuridão da noite, a mão largou a coluna de ferro, igualmente encharcada. O corpo despencou lentamente e encontrou a queda, o vento lhe cortava a face e as gotículas de chuva chicoteavam-lhe o rosto como milhões de tapas de mulher. A queda foi mais rápida do que parecia, o corpo chocou-se contra a correnteza brutal do rio, e sentiu cada osso do seu corpo partir-se, num abraço colossal da morte. A queda foi mais rápida que imaginara, pensou. Pelo ao menos, antes não parecia tão rápido, não mesmo. A visão se fechou em um negro tão escuro como onix, e sentiu tudo leve, e mais leve.
...
É o fim? Pensou.
Sentiu um calor familiar na face, que acabara de chegar em resposta à sua pergunta. Que era retórica. Já sabia que nada havia mudado.
Acordou em uma praia, na beira de um rio, totalmente encharcado e com uma pequena enchaqueca que já lhe era uma velha amiga. Respirou fundo, sentiu o ar arder em seus pulmões perfeitos, que já se partiram severas vezes em inúmeras formas de morte.
Todos os ossos que sentiu se partirem há algumas horas atrás, estavam melhores do que nunca. Realmente era uma maldição, pensou.
A lembrança de que era um imortal lhe retornou à mente. Em um suspiro descrente, levantou e saiu cambaleando como um maldito bêbado até o barranco que dava para a estrada.
Bem, era um recomeço, pensou.
Tirou o uma agenda do sobretudo encharcado, que estava estranhamente intacta, junto dela havia uma caneta, tão intocada quanto. Anotou um número:
1579.
Mil quinhentas e setenta e nove mortes contabilizadas, suas mortes, de mais ninguém. Não entendia porque anotava, qual era a finalidade daquela maldita agenda e muito menos de sua vida infindável, mas já se acostumara.
Fitou o sol e depois o barranco, e começou a escalá-lo, ouvia o barulho dos carros que passavam freneticamente lá em cima, e foi mais uma vez em direção à vida, como já fizera seguidas vezes.
Nada como um dia após o outro, e outro e outro, enfim, nada se podia fazer.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Idas e vindas de uma Vida
Short StoryTroy se vê exausto de tudo o que o cerca. Com a ajuda de suas anotações, ele relata mais uma de suas tentativas de acabar com tudo mesmo sabendo que irá fracassar.