Sampa City, aqui estou eu!

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1.
Ultrapassou uma Kombi branca cheia de gente, malas e alegria, devia ser uma família rumo às férias na praia; nem precisou acelerar para que um fuscão queimando óleo, dirigido por um homem idoso de boné, ficasse na rabeira; uma guinada à direita e pôs a perder de vista um caminhão verde, pesadão,que roncava no asfalto; com ônibus todo cuidado é pouco,quase se azarara uma vez, mas de olho vivo, concentrado,passou por dois. Não costumava abusar nas rodovias, aliás fazia a primeira viagem longa, uns duzentos quilômetros, emoção que somada à manhã, toda azul, e ao vento, uma delícia,convidava-o a imprimir maior velocidade à sua moto.Mas nunca faltam malucos dispostos a competir.Em certo trecho da estrada ia lento a pensar na mãe e na irmã casada que ficaram no interior e imaginando como seria sua vida em São Paulo, para onde se mudava, quando um cuca-fresca, sobre uma moto muito mais potente que a sua, fez-lhe um tchau com a mão, desses que humilham, e arrancou cem metros à sua frente.Felipe, chamava-se assim, sabia que sua máquina não era lá muito veloz, razão de sua especialidade em curvas e obstáculos, porém acelerou com apetite. Surpresa! Num instante emparelhava-se com a outra moto, uma 350, que lhe pareceu preparada para algum tipo de competição. Ele próprio,o piloto, mais que simples motoqueiro, tinha cara e jeito de quem participava de corridas.

Vendo a aproximação, o moço da 350 fez outro movimento com a mão:

— "Siga-me se tem peito!" — e distanciou-se novamente. Felipe não abandonou o páreo, quis mais. Alguns quilômetros além, voltava a colocar-se pouco atrás do corredor,mas como se quisesse apenas acompanhá-lo. Os artistas da velocidade nunca se precipitam, como aprendera nas provas assistidas no interior, mas também jamais perdem oportunidade para ultrapassar. E lá estava uma: à frente, um congestionamento e algumas curvas fechadas. Firmou o capacete na cabeça, proteção é proteção, falou qualquer coisa com Deus, meteu-se entre alguns carros, tornou a emparelhar com a 350, soltou a mão para o tchau, passou-a, e mergulhou numa seqüência de curvas em declive, no que era pra lá de bom.Felipe acelerou até o limite da capacidade da máquina,rindo de boca toda, mas não era nenhum bobo. Sabia que o outro, com aquela 350, logo o alcançaria no primeiro retão. Bancou o esperto: parou e escondeu-se num posto de gasolina.Em seguida, sem vê-lo, o motoqueiro da outra moto surgia na maior doideira, todo curvado, não entendendo como uma 180 pudera avançar tanto à sua frente."Ele vai correr atrás de nada até Sampa City", pensou Felipe, reavivando o sorriso que esquecera na estrada. "É até capaz de vender sua bela 350 por uma mixaria, só de raiva."

—Gasolina? — perguntou o frentista.

—Não, chapa, só queria um copo de água.

2.

Clóvis, tio de Felipe, estava com aquela cara larga e simpática à porta principal do seu estabelecimento. Era um desses tipos tão legais que até os estranhos, quando passavam

por ele, diziam bom-dia. Ninguém o surpreendia de mau humor,azedo, mesmo se caísse tempestade ou se a freguesia desaparecesse por uma semana. Uma vez, já com quarenta,pegou caxumba — imiaginem! —, mas nem assim se queixou ou guardou sua cordialidade na gaveta.Chegando em sua moto depois do mundão de estrada e do pega com a 350, Felipe viu a placa à distância: BOX DOS MOTOQUEIROS, toda vermelhuda, com letras amarelas. Sabia que o irmão de dona Glória (beijoca, mamãe) era do ramo,proprietário de uma oficina de motos, mas não daquele tamanho!

—Eh, homem gordo, quer comprar minha motoca? Clóvis berrou para o interior do estabelecimento:

— Lola, chegou o novo inquilino! — E foi aproximando-se do sobrinho ainda sentado na moto.

— Vai me dizer que veio lá dos confins dirigindo esse caco velho?

— Vim e deixei pra trás um chato que quis me esnobar com uma 350.

garra de campeaoOnde histórias criam vida. Descubra agora