Capítulo 07

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O general Rafael Urdaneta tomou o poder a 5 de setembro. Esgotara-se o
mandato do congresso constituinte e, não havendo outra autoridade válida para
legitimar o golpe, os rebeldes apelaram para o conselho municipal de Santa Fé, que
reconheceu Urdaneta como encarregado do poder enquanto o general não o
assumia. Assim culminou uma insurreição das tropas e oficiais venezuelanos
acantonados em Nova Granada, que derrotaram as forças do governo com o apoio
dos pequenos proprietários da savana e do clero rural. Era o primeiro golpe de
estado da república da Colômbia, e a primeira das quarenta e nove guerras civis que
o país iria sofrer no que faltava do século. O presidente Joaquín Mosquera e o vice-
presidente Caycedo, solitários em meio ao nada, abandonaram seus cargos.
Urdaneta apanhou o poder no chão, e seu primeiro ato de governo foi enviar uma
delegação pessoal a Cartagena, para oferecer ao general a presidência da república.
José Palacios não se lembrava de ter visto o amo com uma saúde tão estável
como naqueles dias, pois as dores de cabeça e as febres da tarde depuseram as
armas apenas chegou a notícia do golpe militar. Mas também nunca o vira em
estado de tamanha ansiedade. Preocupado, Montilla tinha conseguido a
cumplicidade de frei Sebastián de Sigüenza para dar ao general uma ajuda
encoberta. O frade aceitou de bom grado, e trabalhou bem, deixando-se vencer no
xadrez durante as tardes áridas em que esperavam os emissários de Urdaneta. O
general aprendera a mover as peças em sua segunda viagem à Europa, e pouco lhe
faltou para se tornar um mestre jogando com o general O'Leary nas noites mortas
da longa campanha do Peru. Porém não se sentiu capaz de ir mais longe. "O xadrez
não é um jogo, é uma paixão", dizia. "Eu prefiro outras, mais arrojadas." Entretanto,
incluíra o xadrez nos programas de instrução pública, como um dos jogos úteis e
honestos que deviam ser ensinados na escola. A verdade é que nunca persistiu
porque seus nervos não tinham sido feitos para um jogo tão sóbrio e a concentração
exigida lhe fazia falta para assuntos mais graves. Frei Sebastián o encontrava
balançando-se a empurrões na rede que mandara armar em frente à porta da rua, para vigiar o caminho de poeira abrasadora por onde deviam aparecer os emissários
de Urdaneta. "Ah, padre", dizia, ao vê-lo chegar. "O senhor não me assusta." Mal se
sentava para mover suas peças: depois de cada lance se punha de pé, enquanto o
frade pensava.
— Não me distraia, Excelência — dizia frei Sebastián —, que eu o como vivo.
O general ria:
— Quem almoça com a soberba janta com a vergonha.
O'Leary costumava parar junto à mesa para estudar o tabuleiro e lhe sugerir
alguma jogada. Ele rejeitava, indignado. Em compensação, cada vez que ganhava,
saía para o pátio, onde os oficiais jogavam cartas, e cantava vitória. Na metade de
uma partida, o religioso lhe perguntou se não pensava em escrever suas memórias.
— Nunca — disse ele. — Isso é coisa de gente morta.
O correio, que foi uma de suas obsessões dominantes, transformou-se num
martírio. Mais ainda naquelas semanas de confusão em que os estafetas de Santa
Fé se demoravam à espera de novas notícias, e os correios de ligação se cansavam
de esperar por eles. Ao mesmo tempo, os correios clandestinos se tornaram mais
pródigos e apressados. De modo que o general tinha notícia das notícias antes de
chegarem, e lhe sobrava tempo para amadurecer suas decisões.
Quando soube que os emissários estavam perto, em 17 de setembro, mandou
Carreño e O'Leary esperá-los na estrada de Turbaco. Eram os coronéis Vicente
Piñeres e Julián Santa María, cuja primeira surpresa foi o bom estado de espírito
em que encontraram o doente desenganado de que tanto se falava em Santa Fé.
Improvisou-se na casa um ato solene, com a presença de próceres civis e militares,
no qual se pronunciaram discursos de ocasião e se brindou à saúde da pátria. Mas
no final reteve os emissários, e se disseram, a sós, as verdades. O coronel Santa
María, que era afeiçoado ao patético, deu a nota culminante: se o general não
aceitasse o comando ia haver uma espantosa anarquia no país. Ele se esquivou.
— Primeiro existir para depois modificar — disse. — Só quando se desanuviar o
horizonte político é que saberemos se há pátria ou não há pátria.
O coronel Santa María não entendeu.
— Quero dizer que o mais urgente é reunificar o país pelas armas — disse o
general. — Mas a extremidade do fio não está aqui, está na Venezuela.
A partir de então, seria a sua idéia fixa: começar de novo, do princípio, sabendo
que o inimigo estava dentro e não fora da própria casa. As oligarquias de cada país,
que em Nova Granada eram representadas pelos santanderistas, e pelo próprio
Santander, tinham declarado guerra de morte à idéia da integridade, por ser
contrária aos privilégios locais das grandes famílias.
— Essa é a causa real e única desta guerra de dispersão que nos mata — disse o
general. — E o mais triste é que pensam estar mudando o mundo, quando o que
estão fazendo é perpetuar o pensamento mais atrasado da Espanha.
Prosseguiu de um fôlego só:
— Eu sei que zombam de mim porque numa mesma carta, num mesmo dia, a
uma pessoa digo uma coisa, e a outra o contrário; que aprovei o projeto de
monarquia, que não o aprovei, ou que em outro lugar estou de acordo com as duas
coisas ao mesmo tempo.
Acusavam-no de ser instável no modo de julgar os homens e manejar a história,
de combater Fernando VII e se abraçar com Morillo, de fazer a guerra de morte
contra a Espanha e ser um grande promotor de seu espírito, de se apoiar no Haiti
para ganhar e depois considerá-lo um país estrangeiro para não o convidar ao
congresso do Panamá, de ter sido maçom e ler Voltaire na missa mas tornar-se um
paladino da igreja, de cortejar os ingleses enquanto pretendia se casar com uma
princesa da França, de ser frívolo, hipócrita e até desleal, porque adulava os amigos
na presença deles e os difamava pelas costas.
— Pois bem, tudo isso é certo, mas circunstancial — disse — porque tudo eu fiz
com o único objetivo de tornar este continente um país independente e único, e
nisso não tive nem uma contradição, nem uma só dúvida.
E concluiu a seu jeito:
— O mais é sacanagem!
Em carta que mandou dois dias depois ao general Briceno Méndez, escreveu:
"Não quis assumir o poder que as atas me conferem, porque não quero passar por
chefe de rebeldes e ser nomeado militarmente pelos vencedores." Contudo, nas
duas cartas que ditou nessa mesma noite a Fernando para o general Rafael
Urdaneta, teve o cuidado de não ser tão radical.
A primeira foi uma resposta formal, cuja solenidade era por demais evidente desde o cabeçalho: "Excelentíssimo Senhor." Nela justificava o golpe pelo estado de
anarquia e abandono em que ficara a república com a dissolução do governo
anterior. "O povo nesses casos não se engana", escreveu. Mas não havia nenhuma
possibilidade de aceitar a presidência. A única coisa que podia oferecer era sua
disposição de voltar a Santa Fé para servir ao novo governo como simples soldado.
A outra era uma carta particular, como já indicava a primeira linha: "Meu
querido general." Extensa e explícita, não deixava a menor dúvida sobre as razões de
sua incerteza. Como dom Joaquín Mosquera não havia renunciado a seu título,
amanhã poderia fazer-se reconhecer como presidente legal e colocá-lo na posição de
usurpador. Assim, reiterava o que dissera na carta anterior: enquanto não
dispusesse de um mandato diáfano, emanado de uma fonte legítima, não havia
possibilidade alguma de assumir o poder.
As duas cartas foram pelo mesmo correio, junto com o original de uma
proclamação na qual pedia ao país que esquecesse suas paixões e apoiasse o novo
governo. Mas punha-se a salvo de qualquer compromisso. "Embora pareça oferecer
muito, não ofereço nada", diria mais tarde. E reconheceu ter escrito algumas frases
cujo único propósito era lisonjear quem esperava por isso.
O mais significativo da segunda carta era o tom de comando, surpreendente
numa pessoa desprovida de todo poder. Pedia a promoção do coronel Florencio
Jiménez, para que fosse ao ocidente com tropas e armamentos bastantes para
resistir à guerra ociosa travada contra o governo central pelos generais José María
Obando e José Hilario Lópes — "Os que assassinaram Sucre", insistia. Também
recomendava outros oficiais para diversos cargos importantes. "Atenda o senhor a
essa parte", dizia a Urdaneta, "que eu farei o resto, do Magdalena à Venezuela,
incluindo Boyacá." Ele próprio se dispunha a marchar sobre Santa Fé à frente de
dois mil homens, contribuindo desse modo para o restabelecimento da ordem
pública e a consolidação do novo governo.
Não tornou a receber notícias diretas de Urdaneta durante quarenta e dois dias.
Mas continuou a lhe escrever assim mesmo, durante o longo mês no qual só fez
distribuir ordens militares aos quatro ventos. Os navios chegavam e iam embora,
mas não se voltou a falar da viagem à Europa, embora ele a lembrasse de vez em
quando como modo de pressão política. A casa do Pie de la Popa se converteu no
quartel-general de todo o país, e poucas decisões militares deixaram de ser inspiradas ou tomadas por ele, da rede. Passo a passo, quase sem querer, acabou
também comprometido nas decisões que iam além dos assuntos militares. E até se
ocupava de miudezas, como conseguir emprego nos correios para seu bom amigo, o
senhor Tatis, e reincorporar ao serviço ativo o general José Ucrós, que já não
suportava a paz de sua casa.
Nesses dias costumava repetir com renovada ênfase uma antiga frase sua:
"Estou velho, doente, cansado, desiludido, fustigado, caluniado e mal pago."
Entretanto, ninguém que o visse teria acreditado. Pois ao mesmo tempo que parecia
só atuar em manobras de gato escaldado para fortalecer o governo, o que fazia na
realidade era planejar peça por peça, com autoridade e comando de general-em-
chefe, a minuciosa máquina militar com que se propunha retomar a Venezuela e
começar outra vez, dali, a restaurar a aliança de nações maior do mundo.
Não se podia imaginar ocasião mais propícia. Nova Granada estava segura em
mãos de Urdaneta, com o partido liberal derrotado e Santander ancorado em Paris.
O Equador estava assegurado por Flores, o mesmo caudilho venezuelano,
ambicioso e combativo, que separara Quito e Guayaquil da Colômbia para criar uma
república nova mas o general confiava em recuperá-lo para sua causa depois de
punir os assassinos de Sucre. A Bolívia estava assegurada com o marechal de Santa
Cruz, seu amigo, que acabava de lhe oferecer a embaixada junto à Santa Sé. De
modo que o objetivo imediato era arrebatar de uma vez por todas ao general Páez o
domínio da Venezuela.
O plano militar do general parecia concebido para iniciar a partir de Cúcuta uma
ofensiva em grande escala, enquanto Páez se concentrava na defesa de Maracaibo.
Mas no dia primeiro de setembro a província de Riohacha depôs o comandante de
armas, rejeitou a autoridade de Cartagena e se proclamou venezuelana. Não
somente lhe veio de imediato o apoio de Maracaibo como mandaram em seu
socorro o general Pedro Carujo, o cabecilha do 25 de setembro, que escapara à
justiça com a ajuda do governo da Venezuela. Montilla foi levar a notícia logo que a
recebeu, mas o general já sabia, e estava exultante. Pois a insurreição de Riohacha
lhe dava oportunidade para mobilizar contra Maracaibo, a partir de outra frente,
forças novas e melhores.
— E mais — disse —, temos Carujo em nossas mãos.
Nessa mesma noite se trancou com seus oficiais e traçou a estratégia com grande precisão, descrevendo os acidentes do terreno, movendo exércitos inteiros
como peças de xadrez, antecipando-se aos propósitos mais secretos do inimigo. Não
tinha formação acadêmica sequer comparável à de qualquer dos seus oficiais, na
maioria formados nas melhores escolas militares da Espanha, mas era capaz de
conceber uma situação completa até os últimos detalhes. Sua memória visual era
tão surpreendente que podia prever um obstáculo visto muitos anos antes, e
embora longe de ser um mestre nas artes da guerra, ninguém o superava em
inspiração.
Ao amanhecer, o plano estava pronto em todos os pormenores. Era minucioso e
feroz, e tão visionário que o assalto a Maracaibo estava previsto para fins de
novembro ou, no pior dos casos, para começo de dezembro. Terminada a revisão
final às oito da manhã de uma terça-feira chuvosa, Montilla lhe fez ver que se
notava no plano a falta de um general granadino.
— Em Nova Granada não há um general que valha alguma coisa — disse ele. —
Os que não são ineptos são safados.
Montilla procurou amenizar o assunto:
— E o senhor, general, para onde vai?
— Neste momento tanto me faz Cúcuta como Riohacha — disse ele.
Ia se retirando quando o cenho duro do general Carreño lhe recordou a
promessa várias vezes desatendida. A verdade é que ele queria tê-lo ao lado, a
qualquer custo, mas já não podia mais alimentar seus desejos. Deu-lhe no ombro a
palmadinha de sempre, e disse:
— Promessa cumprida, Carreño, você também vai.
A expedição, de dois mil homens, saiu de Cartagena numa data que parecia
escolhida como símbolo: 25 de setembro. Era comandada pelos generais Mariano
Montilla, José Félix Blanco e José María Carreño, que levavam, em separado, a
missão de procurar em Santa Marta uma casa de campo de onde o general pudesse
acompanhar de perto a guerra, enquanto restabelecia a saúde. "Dentro de dois dias
vou para Santa Marta", escreveu a um amigo, "para fazer exercício, para remediar o
tédio em que me encontro e para melhorar de temperamento." Dito e feito: em
primeiro de outubro empreendeu viagem. No dia seguinte, ainda a caminho, foi
mais franco numa carta ao general Justo Briceno: "Sigo para Santa Marta com a idéia de contribuir com minha influência para a expedição que marcha contra
Maracaibo." Nesse mesmo dia tornou a escrever a Urdaneta: "Sigo para Santa Marta
com a idéia de visitar aquela região, onde nunca estive, e para ver se dou conta de
alguns inimigos que influem demais na opinião." Só então revelou o propósito
verdadeiro da viagem: "Verei de perto as operações contra Riohacha, e me
aproximarei de Maracaibo e das tropas para ver se posso influir em alguma
operação importante." De fato, já não era um aposentado que fugia, vencido, para o
desterro: era um general em campanha.
A partida de Cartagena fora precedida por urgências de guerra. Não houve
tempo para despedidas oficiais, e a notícia foi confiada a muito poucos amigos.
Seguindo suas instruções, Fernando e José Palacios deixaram a metade da bagagem
aos cuidados de amigos e de casas de comércio, para não arrastar um lastro inútil a
uma guerra incerta. Deixaram com o comerciante local Juan Pavajeau dez baús de
papéis particulares, com a incumbência de enviá-los a um endereço de Paris que lhe
seria comunicado mais tarde. No recibo constava que o senhor Pavajeau deveria
queimá-los caso o proprietário não os pudesse reclamar por motivo de força maior.
Fernando depositou na casa bancária de Busch & Companhia duzentas onças de
ouro encontradas à última hora, sem rastro algum de origem, entre os objetos do
escritório do tio. Também em depósito, deixou com Juan de Francisco Martin um
cofre com trinta e cinco medalhas de ouro. Confiou-lhe, ademais, uma bolsa de
veludo com duzentas e noventa e quatro medalhas grandes de prata, sessenta e sete
pequenas e noventa e seis médias, e outra igual com quarenta medalhas
comemorativas de prata e ouro, algumas com o perfil do general. Deixou também o
faqueiro de ouro que trazia desde Mompox num antigo caixote de vinhos, alguma
roupa de cama muito usada, dois baús de livros, uma espada com brilhantes e uma
escopeta imprestável. Entre muitas outras coisas miúdas, restolho dos tempos idos,
havia vários pares de óculos em desuso, com graus ascendentes desde que o general
descobrira sua perda incipiente de visão pela dificuldade em se barbear, aos trinta e
nove anos, até que a distância do braço não lhe deu mais para ler.
José Palacios, por sua parte, deixou aos cuidados de dom Juan de Dios Amador
uma caixa que por vários anos tinha viajado com eles de um lado para outro, e de
cujo conteúdo nada se sabia com certeza. Era algo muito próprio do general, que de
repente não podia resistir a uma voracidade possessiva pelos objetos mais inimagináveis, ou pelos homens sem maiores méritos, e ao fim de certo tempo
tinha de levá-los de cambulhada, sem saber como se livrar deles. Trouxera aquela
caixa de Lima a Santa Fé, em 1826, e continuava com ela depois do atentado de 25
de setembro, quando voltou ao sul para sua última guerra. "Não podemos deixá-la,
pelo menos enquanto não soubermos se é nossa", dizia. Quando voltou a Santa Fé
pela última vez, disposto a apresentar sua renúncia definitiva perante o congresso
constituinte, a caixa estava entre o pouco que sobrara de sua antiga bagagem
imperial. Afinal decidiram abri-la em Cartagena, no curso de um inventário geral de
seus bens, e descobriram dentro uma mixórdia de objetos pessoais que fazia tempo
se davam por perdidos. Havia quatrocentas e quinze onças de ouro cunhado na
Colômbia, um retrato do general George Washington com uma mecha de seu
cabelo, uma caixa de ouro para rapé presenteada pelo rei da Inglaterra, um estojo de
ouro com chaves de brilhantes dentro do qual havia um relicário, e a grande estrela
da Bolívia com brilhantes incrustados. José Palacios deixou tudo isso na casa de De
Francisco Martin, descrito e anotado, e pediu recibo em regra. A bagagem ficou
reduzida a um tamanho mais racional, embora ainda restassem três dos quatro
baús com sua roupa de uso, outro com dez toalhas de mesa de algodão e linho
muito usadas, e uma caixa com talheres de ouro e prata de vários estilos
misturados, que o general não quis deixar nem vender, para o caso de serem mais
tarde necessários em algum banquete que oferecesse a hóspedes ilustres. Muitas
vezes lhe fora aconselhado leiloar aqueles objetos para aumentar seus escassos
recursos, mas ele se negava sempre, sob o argumento de que eram bens do estado.
Com a bagagem aliviada e o séquito diminuído, fizeram a primeira jornada até
Turbaco. Prosseguiram no dia seguinte com bom tempo, mas antes do meio-dia
tiveram que se abrigar debaixo de um mogno, onde passaram a noite expostos à
chuva e aos ventos malignos dos pantanais. O general se queixou de dores no baço e
no fígado, e José Palacios lhe preparou uma poção do manual francês, mas as dores
se tornaram mais intensas e a febre aumentou. Ao amanhecer, estava numa tal
prostração que o levaram desfalecido à vila de Soledad onde um velho amigo, dom
Pedro Juan Visbal, o hospedou em casa. Ali permaneceu mais de um mês, com toda
espécie de dores, recrudescidas com as chuvas opressivas de outubro.
Soledad era um nome bem posto: tinha quatro ruas com casas de pobres,
quentes e desoladas, a umas duas léguas da antiga Barranca de San Nicolás, que daí
a poucos anos se transformaria na cidade mais próspera e hospitaleira da região. O general não poderia encontrar sítio mais aprazível, nem casa mais propícia a seu
estado, com as seis sacadas andaluzas que a inundavam de luz, e um pátio bom para
meditar debaixo da sumaúma centenária. Da janela do quarto dominava a pracinha
deserta, a igreja em ruínas e as casas com telhados de folhas de palmeira pintados
com cores natalinas.
A paz doméstica não lhe serviu de nada. Na primeira noite teve uma ligeira
vertigem, mas se negou a admitir que fosse um novo indício de sua prostração. De
acordo com o manual francês, descreveu suas mazelas como uma atrabile agravada
por um resfriado geral, e um antigo reumatismo que a intempérie fizera voltar. Esse
diagnóstico múltiplo lhe aumentou a prevenção contra os remédios simultâneos
para várias doenças, pois, dizia, os que curavam umas faziam mal a outras. Mas
também reconhecia que não há remédio bom para quem não o toma, e se queixava
com freqüência de não ter um bom médico, enquanto resistia a se deixar tratar
pelos muitos que lhe mandavam.
O coronel Wilson, em carta ao pai escrita naqueles dias, comunicava que o
general podia morrer a qualquer momento, mas que sua repulsa aos médicos não
era fruto do menosprezo, e sim da lucidez. Na realidade, dizia Wilson, a doença era
o único inimigo que o general temia, e se negava a enfrentá-lo para não se desviar
da empresa maior de sua vida. "Tratar de uma doença é como estar empregado num
navio", lhe dissera o general. Quatro anos antes, em Lima, O'Leary havia sugerido
que se submetesse a um tratamento médico completo enquanto preparava a
constituição da Bolívia, e sua resposta foi terminante:
— Não se ganham duas corridas ao mesmo tempo.
Parecia convencido de que o movimento contínuo e o valer-se a si mesmo
esconjuravam a doença. Fernanda Barriga tinha o costume de lhe pôr um babador e
dar a comida com uma colher, como às crianças, e ele a aceitava e mastigava em
silêncio, chegando a tornar a abrir a boca ao terminar. Mas naqueles dias afastava o
prato e a colher, e comia com a mão, sem babador, para que todos entendessem que
não precisava de ninguém. José Palacios ficava de coração partido quando o
encontrava tentando fazer as coisas domésticas que sempre tinham feito para ele os
criados, ou os ordenanças e ajudantes-de-campo. Ficou inconsolável quando o viu
derramar na roupa um frasco inteiro de tinta ao tentar encher um tinteiro. Foi
insólito, porque todos se admiravam de não lhe tremerem as mãos embora estivesse muito mal, e de ter o pulso tão firme que continuava cortando e polindo as
unhas uma vez por semana, e barbeando-se todos os dias.
Em seu paraíso de Lima vivera uma noite feliz com uma moça que tinha uma
penugem macia a cobrir até o último milímetro sua pele de beduína. Ao amanhecer,
enquanto fazia a barba, contemplou-a nua na cama, navegando num sonho
tranqüilo de mulher satisfeita, e não pôde resistir à tentação de torná-la sua para
sempre com um auto sacramental. Cobriu-a dos pés à cabeça com espuma de
sabonete e, num gozo de amor, a raspou toda com a navalha de barbear, ora com a
mão direita, ora com a esquerda, palmo a palmo, até as sobrancelhas emendadas, e
a deixou duas vezes nua em seu corpo magnífico de recém-nascida. Ela lhe
perguntou com a alma em pedaços se a amava de verdade, e ele respondeu com a
mesma frase ritual que ao longo da vida tinha deixado cair sem piedade em tantos
corações:
— Mais que a ninguém nunca neste mundo.
Na vila de Soledad, também enquanto fazia a barba, se submeteu à mesma
imolação. Começou por cortar uma mecha branca e frouxa dos poucos cabelos que
lhe restavam, parecendo obedecer a um impulso infantil. Em seguida cortou outra,
de modo mais consciente, e em seguida outras, sem nenhuma ordem, como se
cortasse capim, enquanto declamava pelas gretas da voz suas estrofes prediletas de
La araucana. José Palacios entrou no quarto para ver com quem ele estava falando,
e o encontrou passando a navalha no crânio coberto de espuma. Ficou pelado.
O exorcismo não conseguiu redimi-lo. Durante o dia usava o gorro de seda, e de
noite punha o barrete vermelho, de ponta, mas ambos de pouco lhe valiam contra
os sopros gelados do desânimo. Levantava para caminhar no escuro pela enorme
casa lunar, só que já não podia andar nu, e se embrulhava numa manta para não
tiritar de frio nas noites de calor. Com o passar dos dias não lhe bastou a manta:
resolveu pôr o barrete vermelho por cima do gorro de seda. As intrigas separatistas
dos militares e os abusos dos políticos o exasperavam tanto que uma tarde decidiu
com um soco na mesa que já não suportava mais nem uns nem outros. "Digam-lhes
que estou tísico, para que nunca mais voltem", gritou. Foi uma determinação tão
drástica que proibiu os uniformes e os rituais militares em casa. Mas não pôde
sobreviver sem eles, de modo que as audiências de consolação e os conciliábulos
estéreis continuaram como dantes, contra suas próprias ordens. Tão mal se sentia que aceitou a visita de um médico, com a condição de não o examinar nem fazer
perguntas sobre suas dores nem querer dar-lhe alguma coisa a beber.
— Só para conversar — disse.
O escolhido não podia se parecer mais com os seus desejos. Chamava-se
Hércules Gastelbondo, e era um velho ungido pela felicidade, imenso e plácido, com
o crânio irradiante devido à calvície total, e uma paciência de afogado que por si só
aliviava os males alheios. Sua incredulidade e sua intrepidez científica eram
famosas em todo o litoral. Receitava creme de chocolate e queijo derretido para os
transtornos da bile, aconselhava fazer amor durante as modorras da digestão como
bom paliativo para uma longa vida, e fumava sem parar uns charutos de carroceiro
que enrolava em papel pardo, e os receitava a seus doentes contra toda espécie de
mal-entendidos do corpo. Os próprios pacientes diziam que nunca os curava de
todo, mas os divertia com sua prosa florida. Ele dava uma risada plebéia:
— Os outros médicos perdem tantos doentes como eu — dizia. — Mas comigo
eles morrem mais contentes.
Chegou na carruagem do senhor Bartolomé Molinares, que ia e vinha várias
vezes por dia, levando e trazendo todo tipo de visitantes espontâneos, até que o
general lhes proibiu virem sem ser convidados. Chegou com uma roupa de linho
branco amarrotada, abrindo caminho debaixo da chuva, com os bolsos entupidos de
coisas de comer e com um guarda-chuva tão desconjuntado que mais parecia feito
para convocar as águas que para impedi-las. A primeira coisa que fez depois dos
cumprimentos formais foi pedir desculpas pela peste do charuto, que já estava pela
metade. O general, que não suportava o cheiro do tabaco, não só então, mas desde
sempre, o dispensara de antemão.
— Estou acostumado — disse. — Manuela fuma uns ainda mais fedorentos do
que os seus, até na cama, e joga a fumaça muito mais de perto que o senhor.
O doutor Gastelbondo agarrou depressa uma ocasião que lhe queimava a alma.
— Ah, sim — disse. — E como vai ela?
— Quem?
— Dona Manuela.
O general respondeu seco:
— Bem.
E mudou de assunto de modo tão ostensivo que o médico soltou uma
gargalhada para disfarçar sua impertinência. O general sabia, sem dúvida, que
nenhuma de suas travessuras galantes estava a salvo dos cochichos de seu séquito.
Nunca fez alarde de suas conquistas, mas tinham sido tantas e tão ruidosas que os
seus segredos de alcova eram de domínio público. Uma carta comum levava três
meses de Lima a Caracas, mas os mexericos sobre suas aventuras pareciam voar
com o pensamento. O escândalo o perseguia como outra sombra, e suas amantes
ficavam assinaladas para sempre com uma cruz de cinza, mas ele cumpria o dever
inútil de manter os segredos de amor protegidos por um foro sagrado. Ninguém
jamais lhe arrancou uma indiscrição sobre uma mulher que tivesse sido sua, salvo
José Palacios, que era cúmplice de tudo. Nem sequer para satisfazer uma
curiosidade tão inocente como a do doutor Gastelbondo, e referente a Manuela
Sáenz, cuja intimidade era tão pública que já tinha muito pouco a proteger.
A não ser por esse incidente instantâneo, o doutor Gastelbondo foi para o
general uma presença providencial. Reanimou-o com suas loucuras sábias,
partilhava com ele os bichinhos de açúcar cristalizado, os casadinhos de doce de
leite, os rebuçados de tapioca que trazia nos bolsos, e que ele aceitava por gentileza
e comia por distração. Um dia se queixou de que essas guloseimas de salão só
serviam para entreter a fome, mas não para recuperar o peso, que era o que queria.
"Não se preocupe, Excelência", replicou o médico. "Tudo o que entra pela boca
engorda, e tudo o que sai dela avilta." O general achou o argumento tão divertido
que aceitou tomar com o médico um cálice de vinho generoso e uma xícara de sagu.
Entretanto, o humor que o médico melhorava com tanto carinho era estragado
pelas más notícias. Alguém contou que o dono da casa onde vivera em Cartagena
tinha queimado, por medo do contágio, a cama onde ele dormia, junto com o
colchão e os lençóis, e tudo quanto lhe passara pelas mãos durante a estada. Ele
ordenou a dom Juan de Dios Amador que do dinheiro que lhe havia deixado
pagasse as coisas destruídas como se fossem novas, além do aluguel da casa. Mas
nem assim conseguiu aplacar sua amargura.
Pior ainda se sentiu alguns dias depois, quando soube que dom Joaquín
Mosquera tinha passado por lá, em trânsito para os Estados Unidos, e não se
dignara fazer-lhe uma visita. Perguntando a uns e outros, sem dissimular a ansiedade, soube que de fato Mosquera tinha permanecido na costa mais de uma
semana enquanto esperava o navio, que visitara muitos amigos comuns e também
alguns inimigos seus, e a todos manifestara ressentimento pelo que qualificava de
ingratidão do general. No momento de embarcar, já na chalupa que o levava a
bordo, resumira sua idéia fixa para os que foram à despedida.
— Lembrem-se bem — disse. — Esse sujeito não gosta de ninguém.
José Palacios sabia o quanto o general era sensível a essa censura. Nada lhe
doía tanto como alguém pôr em dúvida os seus afetos, e era capaz de apartar
oceanos e derrubar montanhas, com seu terrível poder de sedução, até demonstrar
que não era assim. Na plenitude da glória, Delfina Guardiola, a bela de Angostura,
bateu-lhe com as portas de sua casa no nariz, enfurecida pela inconstância dele. "O
senhor é um homem eminente, general, mais que qualquer outro", disse. "Mas o
amor lhe fica grande." Ele entrou pela janela da cozinha e ficou com ela três dias.
Não somente esteve a pique de perder uma batalha como também a pele, até
conseguir que Delfina lhe confiasse seu coração.
Mosquera já estava fora de alcance, mas ele desabafou seu rancor com quem
pôde. Perguntou que direito tinha a falar de amor um homem que permitira que
comunicassem a ele, em nota oficial, a resolução na qual a Venezuela o repudiava e
desterrava. "E deve dar graças de eu não ter respondido, porque ficou a salvo de
uma condenação histórica", gritou. Recordou tudo quanto fizera por Mosquera,
quanto o ajudara a ser o que era, quanto tivera que suportar as imbecilidades de seu
narcisismo rural. Por último escreveu a um amigo comum uma carta extensa e
desesperada, para ter certeza de que as vozes de sua angústia alcançariam Mosquera
em qualquer parte do mundo. As notícias que não chegavam o envolviam como
uma névoa invisível. Urdaneta continuava sem responder suas cartas. Briceno
Méndez, seu homem na Venezuela, lhe mandara uma, acompanhada de frutas da
Jamaica, de que tanto gostava, mas o mensageiro tinha se afogado. Justo Briceno,
seu homem na fronteira oriental, o levava ao desespero pela lentidão. O silêncio de
Urdaneta fizera descer uma sombra sobre o país. A morte de Fernández Madrid, seu
correspondente em Londres, fizera descer uma sombra sobre o mundo.
O que não sabia é que, enquanto ficava sem notícias de Urdaneta, este
mantinha uma correspondência ativa com oficiais de seu séquito, induzindo-os a
arrancarem dele uma resposta inequívoca. A O'Leary escreveu: "Preciso saber da uma vez por todas se o general aceita ou não aceita a presidência, ou se toda a vida
havemos de correr atrás de um fantasma que não se pode alcançar." Não somente
O'Leary, como outros da roda, tentavam conversas ocasionais para dar alguma
resposta a Urdaneta, mas as evasivas do general eram incontornáveis.
Quando por fim chegaram notícias precisas de Riohacha, eram mais graves que
os maus presságios. O general Manuel Valdés, como estava previsto, tomou a cidade
sem resistência, no dia 20 de outubro, mas Carujo aniquilou na semana seguinte
duas companhias de exploração. Valdés apresentou a Montilla uma renúncia que se
pretendia honrosa, e que ao general pareceu indigna. "Esse canalha está morto de
medo", disse. Faltavam só quinze dias para tentar tomar Maracaibo, de acordo com
o plano inicial, mas o simples domínio de Riohacha já era um sonho impossível.
— Carajos! — gritou o general. — A fina flor dos meus generais não conseguiu
desbaratar uma revolta de quartel.
Todavia, a notícia que mais o afetou foi de que as populações fugiam à
passagem das tropas do governo, porque as identificavam com ele, a quem
apontavam como assassino do almirante Padilla, um ídolo em Riohacha, sua terra
natal. Ademais, o desastre parecia combinado com os do resto do país. A anarquia e
o caos se estabeleciam por toda parte, e o governo de Urdaneta era incapaz de
submetê-los.
O doutor Gastelbondo se surpreendeu mais uma vez com o poder vivificador da
cólera, no dia em que encontrou o general lançando impropérios bíblicos diante de
um emissário especial que acabava de lhe dar as últimas notícias de Santa Fé. "Esta
merda de governo, em vez de atrair os povos e os homens de importância, os
mantém paralisados", berrava. "Tornará a cair e não se levantará pela terceira vez,
porque os homens que o compõem e as massas que o sustentam estão aniquilados."
Foram inúteis os esforços do médico para acalmá-lo, pois quando parou de
fustigar o governo repassou aos gritos a lista negra de seus estados-maiores. Do
coronel Joaquín Barriga, herói de três batalhas das grandes, disse que era pior do
que tudo o que se pudesse imaginar: "até assassino". Do general Pedro Margueytío,
suspeito de participar da conspiração para matar Sucre, disse que era um pobre
coitado no comando de tropas. O general González, o homem de maior confiança
que tinha no Cauca, foi reduzido a pó num golpe brutal: "Seus males são a
fragilidade e a flatulência." Desabou ofegante na cadeira de balanço para dar a seu coração a pausa de que precisava há vinte anos. Então viu o doutor Gastelbondo
paralisado pelo espanto na moldura da porta, e ergueu a voz:
— Afinal de contas, que se pode esperar de um homem que perdeu duas casas
no jogo de dados?
O doutor Gastelbondo ficou perplexo.
— De quem estamos falando? — perguntou.
— De Urdaneta — disse o general. — Perdeu-as em Maracaibo para um
comandante da marinha, mas nos documentos fez constar que as tinha vendido.
Aspirou o ar que lhe fugia.
— Claro que todos são uns santos ao lado do intrujão Santander — prosseguiu.
— Seus amigos roubaram o dinheiro dos empréstimos ingleses comprando papéis
do estado pela décima parte do valor real, e o próprio estado os aceitava depois a
cem por cento. — Explicou que em todo caso ele não fora contra os empréstimos
por causa do risco da corrupção, mas por ter previsto a tempo que ameaçavam a
independência conquistada à custa de tanto sangue.
— Odeio as dívidas mais que aos espanhóis — disse. — Por isso adverti
Santander de que todo o bem que fizéssemos pela nação de nada adiantaria se
aceitássemos a dívida, porque continuaríamos pagando amortizações pelos séculos
dos séculos. Agora estamos vendo claro: a dívida acabará nos derrotando.
Nos primeiros tempos do governo da república, não somente estivera de acordo
com a decisão de Urdaneta de respeitar a vida dos vencidos como a havia exaltado,
por ver nela uma nova ética da guerra: "Tomara que nossos inimigos não nos façam
o que fizemos com os espanhóis." Ou seja, a guerra de morte. Mas em suas noites
tenebrosas da vila de Soledad lembrou a Urdaneta, numa carta terrível, que em
todas as guerras civis vencia sempre o mais feroz.
— Acredite, meu doutor — disse ao médico. — Nossa autoridade e nossas vidas
não podem ser conservadas senão à custa do sangue dos nossos adversários.
A cólera passou de chofre, sem deixar vestígio, de maneira tão intempestiva
como havia começado, e o general empreendeu a absolvição histórica dos oficiais
que acabava de insultar. "No fim de contas, quem se enganou fui eu", disse. "Eles só
queriam fazer a independência, que era algo imediato e concreto, e como o fizeram
bem!" Estendeu ao médico a mão de pele e osso, para que o ajudasse a se levantar, e
concluiu com um suspiro: "E eu, em compensação, me perdi num sonho,
procurando o que não existe Nesses dias decidiu a situação de Iturbide. Em fins de
outubro, o oficial recebera uma carta da mãe, ainda em Georgetown, na qual lhe
contava que o progresso das forças liberais no México afastava cada vez mais da
família qualquer esperança de repatriação. Essa incerteza, somada à que trazia do
berço, tornou-se para ele insuportável. Por sorte, uma tarde em que passeava pelo
corredor da casa apoiado em seu braço, o general fez uma evocação inesperada.
— Do México só tenho uma lembrança desagradável — disse. — Em Veracruz, os
mastins do capitão do porto esquartejaram os dois cães que eu levava para a
Espanha.
De qualquer modo, disse, aquela foi a sua primeira experiência do mundo, e o
marcou para sempre. Veracruz estava prevista apenas como uma breve escala de
sua primeira viagem à Europa, em fevereiro de 1799, mas se prolongou por quase
dois meses por causa de um bloqueio inglês a Havana, que era a escala seguinte. A
demora lhe deu tempo de ir de coche até a Cidade do México, galgando quase três
mil metros por entre vulcões nevados e desertos alucinantes que não tinham nada
em comum com as auroras pastorais do vale de Aragua, onde vivera até então.
"Pensei que a lua devia ser assim", disse. Na Cidade do México ficou surpreendido
com a pureza do ar e deslumbrado com a profusão e a limpeza dos mercados
públicos, onde se vendiam para comer bichos vermelhos da pita, pangolins,
minhocas de rio, ovos de mosquito, gafanhotos, larvas de formigas lava-pés, gatos-
monteses, baratas d'água com mel, vespas do milho, iguanas cultivados, cobras
cascavéis, pássaros de toda espécie, cachorros anões e uma variedade de feijões que
pulavam sem cessar com vida própria. "Comem tudo o que anda", disse. Admirou as
águas diáfanas dos numerosos canais, as barcas pintadas de cores domingueiras, o
esplendor e a abundância das flores. Mas ficou deprimido com os dias curtos de
fevereiro, os índios taciturnos, o chuvisco eterno, tudo o que mais tarde lhe
apertaria o coração em Santa Fé, em Lima, em La Paz, em toda a extensão e altura
dos Andes, e de que então padecia pela primeira vez. O bispo, a quem foi
recomendado, o levou a uma audiência com o vice-rei, que lhe pareceu mais
episcopal que o bispo. Mal prestou atenção ao moreninho magricela, vestido como
um janota, que se declarou admirador da revolução francesa. "Podia ter-me custado
a vida", disse o general, rindo. "É possível que eu tenha pensado que com um vice-
rei devia falar de política, e aquilo era a única coisa que sabia aos dezesseis anos.
Antes de prosseguir viagem, escreveu uma carta ao seu tio dom Pedro Palacios y
Sojo, a primeira que se conservou. "Minha letra era tão ruim que eu mesmo não a
entendia", contou, às gargalhadas. "Mas expliquei ao tio que me saía assim devido
ao cansaço da viagem." Numa folha e meia acumulava quarenta erros de ortografia,
dois deles numa única palavra: "yjo".
Iturbide não pôde fazer nenhum comentário, pois sua memória não dava para
mais. Tudo o que lhe restava do México era uma lembrança de desgraças que
agravavam nele uma melancolia congênita, coisa que o general tinha suas razões
para entender.
— Não fique com Urdaneta — disse. — Nem tampouco vá com sua família para
os Estados Unidos, que são onipotentes e terríveis e que, com aquela história de
liberdade, acabarão por cumular a todos nós de misérias.
A frase trouxe mais uma dúvida a um charco de incerteza. Iturbide exclamou:
— Não me assuste, general!
— Não se assuste você — disse o general num tom tranqüilo. — Vá para o
México, ainda que o matem ou que morra. E vá enquanto é moço, porque depois
será tarde demais, e você não se sentirá nem daqui nem de lá. Se sentirá forasteiro
em toda parte, e isso é pior que estar morto. — Olhou-o firme nos olhos, levou a
mão aberta ao peito e concluiu: — Eu que o diga.
Assim, Iturbide partiu no começo de dezembro com duas cartas para Urdaneta,
uma das quais dizia que ele, Wilson e Fernando eram as pessoas de maior confiança
que tinha em casa. O moço esteve em Santa Fé sem destino fixo até abril do ano
seguinte, quando Urdaneta foi deposto por uma conspiração santanderista. Com
persistência exemplar, sua mãe conseguiu que o nomeassem secretário da legação
mexicana em Washington. Viveu o resto da vida no esquecimento do serviço
público, e não se soube mais nada da família até trinta e dois anos depois, quando
Maximiliano de Habsburgo, imposto pelas armas francesas como imperador do
México, adotou dois jovens Iturbide da terceira geração e os nomeou sucessores em
seu trono quimérico.
Na segunda carta que o general mandou a Urdaneta por Iturbide, rogava-lhe
destruir toda a sua correspondência anterior e futura, para que não ficassem
vestígios de suas horas sombrias. Urdaneta não o atendeu. Tinha feito pedido semelhante ao general Santander, cinco anos antes: "Não mande publicar minhas
cartas, nem eu vivo nem morto, porque foram escritas com muita liberdade e no
meio de muita desordem." Santander também não o atendeu. Suas cartas, ao
contrário das do general, eram perfeitas na forma e no fundo, e logo se via que
tinham sido escritas com a consciência de que seu destinatário final era a história.
Desde a carta de Veracruz até a última que ditou seis dias antes de morrer, o
general escreveu pelo menos dez mil, umas do próprio punho, outras ditadas a seus
secretários, outras redigidas por estes de acordo com instruções suas. Conservaram-
se pouco mais de três mil cartas e uns oito mil documentos assinados por ele.
Às vezes enlouquecia os secretários. Ou ao contrário. Em certa ocasião lhe
pareceu mal escrita a carta que acabava de ditar, e em vez de fazer outra
acrescentou uma linha sobre o redator: "Como você vê, Martell está hoje mais
imbecil que nunca." Na véspera de deixar Angostura para a libertação do continente,
em 1817, pôs em dia seus assuntos de governo com quatorze documentos que ditou
numa única jornada de trabalho. Talvez daí tenha surgido a lenda nunca
desmentida de que ditava a vários secretários, ao mesmo tempo, várias cartas
diferentes.
Outubro se reduziu ao rumor da chuva. O general não tornou a sair do quarto, e
o doutor Gastelbondo precisou recorrer a suas astúcias mais sábias para ter
permissão de visitá-lo e lhe dar de comer. José Palacios tinha a impressão de que
naquelas sestas pensativas em que permanecia deitado na rede sem se balançar,
espiando a chuva na praça deserta, passava em revista na memória até os instantes
mais ínfimos de sua vida passada.
— Deus dos pobres — suspirou uma tarde. — Que será de Manuela!
— Só sabemos que está bem, porque não sabemos nada — disse José Palacios.
Pois o silêncio caíra sobre ela desde que Urdaneta tinha assumido o poder. O
general não lhe escrevera mais, mas dava instruções a Fernando para que a
mantivesse a par da viagem. A última carta dela havia chegado em fins de agosto, e
trazia tantas notícias confidenciais sobre os preparativos do golpe militar, entre a
redação fragorosa e os dados arrevesados de propósito para despistar o inimigo, que
não foi fácil desentranhar seus mistérios.
Esquecendo os bons conselhos do general, Manuela assumira a fundo e até com júbilo excessivo seu papel de primeira bolivariana da nação, e travava sozinha uma
guerra de papel contra o governo. O presidente Mosquera não se atreveu a agir
contra ela, mas não impediu que seus ministros o fizessem. Manuela respondia às
agressões da imprensa oficial com diatribes impressas que distribuía a cavalo na
Calle Real, escoltada por suas escravas. De lança em riste, através das ruelas
empedradas dos subúrbios, perseguia os que distribuíam as papeluchas contra o
general, e cobria com inscrições mais insultantes ainda os insultos que
amanheciam pintados nas paredes A guerra oficial acabou visando-a em pessoa.
Mas não se acovardou. Seus informantes dentro do governo lhe avisaram, num dia
de festas pátrias, que na praça principal estava sendo armado um castelo de fogos
de artifício com uma caricatura do general vestido de rei de fancaria. Manuela e
suas escravas levaram de roldão a guarda e destroçaram a obra com uma carga de
cavalaria. O próprio alcaide mandou prendê-la, tirando-a da cama, por um pelotão
de soldados, mas ela os recebeu com um par de pistolas engatilhadas, e só a
mediação de amigos de ambas as partes impediu um transtorno maior.
A tomada do poder pelo general Urdaneta conseguiu, porém, aplacá-la. Tinha
nele um amigo de verdade, e Urdaneta tinha nela o mais entusiasta de seus
cúmplices. Quando estava sozinha em Santa Fé, enquanto o general guerreava no
sul contra os invasores peruanos, Urdaneta era o amigo de confiança que cuidava de
sua segurança e atendia a suas necessidades. Quando o general se saiu com sua
infeliz declaração no Congresso Admirável, foi Manuela quem o fez escrever a
Urdaneta: "Eu lhe ofereço toda a minha antiga amizade e uma reconciliação
absoluta, de coração." Urdaneta aceitou a oferta generosa, e Manuela lhe pagou o
favor depois do golpe militar. Desapareceu da vida pública, com tanto rigor que em
princípios de outubro corria o rumor de que viajara para os Estados Unidos, e
ninguém pôs isso em dúvida. De sorte que José Palacios tinha razão: Manuela
estava bem, porque nada se sabia dela.
Num desses escrutínios do passado, perdido na chuva, triste de esperar não
sabia o quê nem a quem, nem para quê, o general foi ao fundo do poço: chorou
dormindo. Ao ouvir o queixume, muito baixo, José Palacios pensou que fosse do
cachorro vira-lata recolhido no rio. Mas era do seu senhor. Ficou desconcertado,
porque nos seus longos anos de intimidade só o vira chorar uma vez, e não de
aflição, mas de raiva. Chamou o capitão Ibarra, que velava no corredor, e também
este escutou o rumor do pranto.

O General Em Seu Labirinto Onde histórias criam vida. Descubra agora