Parte 1
Noite de Halloween, as crianças se fantasiam e ganham as ruas em várias partes deste mísero planeta. Meu país não flertava com esta celebração, o dinheiro influenciou a mídia que agora influencia as crianças e pais. Malditas escolas bilíngues e sua cultura americanizada! Esta noite acontecerá uma festa de Halloween em uma chácara alugada por uma destas escolas. As crianças menores festarão a tarde, os adolescentes até as onze e os adultos e professores até o raiar do sol. Eu não mais aguento o barulho produzido por estas músicas em línguas estrangeiras, invadem meu lar, fazem ninho em minha mente. Como honrar a nossa tradição quando nem mesmo nossas casas são respeitadas?
Este abuso precisa parar, nossa sociedade se vende a uma ideia cancerígena de sucesso. Eu não quero ser rico, famoso e manequim, minhas roupas não estampam grandes marcas, minha geladeira não abriga produtos congelados. Renunciei aos prazeres do mundo e não fui recompensado, ao contrário, tudo e todas as pessoas parecem me tentar. Não tenho paz, perco meu juízo alimentando minha mente com ervas medicinais e carbonato de lítio. O próximo passo será a renúncia completa deste invólucro funesto e frágil. Só então chegarei a compreensão total destas forças que tudo movem. Não vejo a hora de ser apresentado a tamanho conhecimento.
Meus dedos estalam, meus ossos doem, estão frios por dentro. Saio em busca de alguma resposta, o vento não me sopra boas lembranças, e sim risadas infantis. As crianças já se aglomeram no fim da rua, com suas fantasias de vampiro, lobisomem, bruxa, fantasma e múmias. Onde estariam as caiporas, cucas, sacis e boitatás? Difícil encontrar roupas assim em lojas do gênero. Volto para minha casa, reviro um velho baú herdado de vovó e encontro um antiquado vestido de noiva. Seu tom amarelado garante sua história. Conforme atravessa meu corpo gordo, perde costura e rasga nas laterais. Estou pronto para ganhar a festa, só preciso de um convite. Abro a gaveta e encontro meu passaporte para o desconhecido. O véu esconde minha expressão, minha pele pálida mistura-se ao pano, já não sei onde começo e termino. Tantos anos o tive ali, refém de um mundo binário, onde o belo não se encaixava a todas as manifestações de beleza. Eu teria andado por aquelas ruas carregando um buquê de cravos amarelos.
Ganho o terreno baldio ao fundo, ele se estende até os muros da chácara onde se realiza a celebração do coitadismo. Conforme me aproximo, sou tomado pelo medo, grandes homens não invadem casas para ganhar suas salas. Eu não mais saberia como provar meu argumento. Ninguém me escutava nos pontos de ônibus, andar descalço e com túnicas de puro algodão deixaram de chamar atenção. Hoje eu me faria presente em cada lar, em cada mente dos que não me escutaram. Os tempos traziam a mudança prometida, e ela não era o suficiente para mim. Mudar o mundo não estava ao meu alcance, agiria localmente, na minha comunidade. Quem sabe meu gesto se tornasse catalisador para um movimento ainda maior? Escalo uma árvore, debruço-me sobre o muro, caio do outro lado. A grama ali não sofreu com a estiagem. Meu vestido rasgado assemelhasse a minha alma, ganhando tons escuros enquanto exploro o ambiente ao meu redor. Tudo é tão artificial e calculado ali dentro. Um pouco de caos equilibraria as forças ali existentes. Caminho sorrateiro pelos fundos da casa, espreito os adultos, observo os pequenos a correr e gritar. É chegada a minha vez.
Parte 2
Todo ano minha mãe me obriga a usar essas fantasias de bebê. Ano passado eu queria vir de mago e ela alugou a de palhacinho, esse ano eu queria vir de zumbi, ela escolhe a de múmia. Não aguento mais ser tratado como criança! Eu não posso voltar sozinho da escola, não posso dormir na casa dos meus amigos, ela sempre me acompanha nas festas de aniversário. Estou cansado disso! Meus amigos João Lucas e Pedro Matheus já contaram para toda a sala que ela me beija quando se despede. Não quero ser conhecido como o bebê da mamãe! Eu já posso muito bem escolher minhas roupas, pentear meu cabelo do meu jeito, amarrar meus sapatos e decidir qual comida vou comer. Ela não entende que eu já cresci e posso muito bem cuidar de mim.
Minha teacher está linda vestida de Sininho, as meninas da minha turma de inglês não mais se fantasiam como crianças, elas se vestem como as irmãs mais velhas, com poucas roupas, e muita maquiagem. Também passam as aulas mexendo no celular, conversando com garotos mais velhos. Elas nos chamam de crianças, infantis e imaturos. Nenhum de nós tem chance com qualquer uma delas. Procuro João Lucas, pergunto se ele quer brincar de esconde-esconde ou polícia e ladrão. Ele diz que não, está enjoado destas brincadeiras que nos fazem passar vergonha diante os mais velhos. Hoje ele iria se comportar como os meninos de treze anos, iria entrosar em alguma rodinha, conversar e quem sabe dançar. Os meninos de treze anos já beijavam na boca. Eu, por mais que amasse Maria Paula, não tinha vontade de beijar a sua boca. Acho que ainda não estou pronto para essas coisas de adolescente. Deixo João e corro até Pedro Matheus, ele está com outros meninos, decidimos por esconde-esconde. Obrigamos o novato a contar até cinquenta, enquanto todos vasculham os cantos escuros da chácara.
Corro até o banheiro, um professor me expulsa dali, a contagem já está em trinta, olho desesperado para as mesas, outros garotos já se escondem sob elas. Fico desesperado, saio sem rumo, procurando um esconderijo, imagino que os números beiram o cinquenta. Logo ele se viraria e eu seria o primeiro a ser encontrado. Enquanto ele grita "pronto ou não, lá vou eu", me agacho e sigo para os fundos da casa, ninguém se atreveu a ir tão longe. Vejo um tanque e me arrasto para debaixo dele. O lugar está empoeirado, mamãe irá me deixar de castigo caso eu estrague esta fantasia alugada. Penso em sair dali, tenho medo de sapos e aranhas, boto a cabeça para fora e vejo um grande homem vindo em minha direção. Começo a rir baixinho, nunca tinha visto um homem fantasiado de noiva. Será que ele é gay?
As pernas peludas param a minha frente. Droga, fui descoberto! O homem diz que eu não deveria estar ali, que saísse depressa. Continuo quieto, não gosto que estranhos mandem em mim. Ele não é meu pai, nem meu professor, nem meu parente. O homem agacha e me encara, pouco vejo por detrás do véu. Que coisa feia e estranha. Nunca tinha visto alguém assim na escola de inglês. Seria ele o dono da chácara, ou algum funcionário da festa? Então ele leva um dos braços em minha direção, esquivo o corpo, ele aperta a minha garganta. A força em sua mão aumenta, começo a dar socos e pontapés, tento gritar mas o ar não sai, estou sufocando. O que aquele merda estava fazendo? Eu iria contar tudo para a minha teacher! Minha mãe não ia gostar nada quando visse as marcas daqueles dedos em meu pescoço. O homem leva a outra mão, começo a chorar, o ar me falta, meus braços e pernas se debatem. Minha visão começa a embaçar, ninguém aparece para me socorrer. O dia começa a escurecer.
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A Tormenta
Short StoryO Maníaco do Halloween tem suas motivações e própria história, assim como as suas vítimas, direta ou indiretamente envolvidas no crime. Entregue-se a este assassinato em seis partes, e conheça pela ótica de cada personagem, as suas correlações para...