Capítulo 2

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Parte 3

Eu não sei o que a população gostaria que eu tivesse feito. Eu sou psiquiatra, não juiz. O paciente Juca Belarmino já chegou ao meu consultório com um diagnóstico prévio. Dado por si próprio, descobri posteriormente. Disse-me que havia realizado a Escala Hare e pontuado trinta e dois. Dizia-se psicopata, quantos mais já não haviam dito as mesmas palavras naquele consultório? Tratei de avaliá-lo conforme minha experiência e técnica. Em nenhuma consulta ficou clara a sua intenção de matar criancinhas indefesas. Se tivesse me contado seu plano, eu certamente teria agido conforme a ética médica e tomado outra conduta. A mídia me acusa de ser cúmplice da tragédia! Uma afronta ao meu diploma e a minha irrepreensível carreira. Eu não estudei medicina em uma universidade federal para ser jogado aos lobos desta forma, ainda mais por jornalistazinhos sensacionalistas que estão querendo aumentar a venda dos seus jornais usando-me de carrasco. Nem perco meu tempo citando os blogueiros e aqueles que trabalham em tabloides.

Fui até chamado ao Conselho Regional de Medicina para me explicar. A grande maioria dos colegas permaneceu ao meu lado, embora alguns tenham questionado meus métodos. Eu fiz o que estava ao meu alcance, tratei-o como mandam as referências internacionais. Que culpa tenho se ele não compartilhava comigo todos os seus pensamentos? Eu o indagava frequentemente se ele sentia vontade de ferir alguém, se possuía algum alvo. Ele negava piamente. Para mim bastou, que culpa tenho se durante uma tarde ele resolve invadir uma festa de Halloween e agredir duas crianças? Só espero que a que está internada na UTI pediátrica da Santa Casa sobreviva, ainda que eu preveja algumas sequelas caso isto aconteça. O outro menino, pobre coitado, foi encontrado já morto debaixo de uma pia de concreto horas após o acontecido. Querem culpar alguém, culpem a organizadora do evento, os seguranças, ou até mesmo as professoras de inglês. Como ninguém notou que duas crianças estavam desaparecidas? Se não fossem os coleguinhas delas, ninguém teria percebido até que seus pais chegassem lá para buscá-las.

Eu também fui um tolo de ter colaborado com a imprensa no início deste caso. Pensei que ser transparente me livraria dos apontamentos. Que nada! Eu concedi ao delegado acesso aos meus arquivos, mostrei-lhe as anotações que fazia durante as consultas com o paciente Juca, ou Maníaco do Halloween, como ficou taxado pela imprensa. A polícia tomou meu depoimento, e não mais fui perturbado por eles. Juca Belarmino era um homem perturbado, não nego, e talvez tivesse mesmo o diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial, como prefiro dizer. Sua mãe o abandonou aos três anos com uma vizinha, e foi tentar a vida nos Estados Unidos de forma ilegal. Nunca retornou para buscar o filho, como prometera. Vez ou outra mandava algum dinheiro para a velha, que era chamado de avó pelo menino. Sua infância não foi fácil, a tal vizinha era desmiolada e carregava o menino pelas ruas da cidade. O que podiam esperar de uma pessoa criada assim? Eu bem compreendo a aversão que ele desenvolveu ao estrangeiro, visto que sua mãe fora tirada dele pelas promessas de prosperidade de uma terra tão longínqua. Pobre Juca, tivesse ido a Miami não teria mantido esta postura. Há dois anos não volto lá, saudades de fazer minhas comprinhas naquelas lojas deslumbrantes!


Parte 4

Eu experimentava um lindo body preto quando o telefone primeiro tocou. Estava no provador e o celular dentro da bolsa. Terminei minha compra e fui conferir a ligação. Quatro ligações perdidas e algumas mensagens novas. Alguma coisa havia acontecido com o meu filhote, a dona da escola de inglês pedia para que eu fosse para a chácara imediatamente. Dirigi consciente, minha mente acomodava-se com a ideia de que ele havia se machucado enquanto brincava com os amiguinhos. A pior hipótese que eu formulava era a de uma fratura do braço. Lá cheguei e fui envolvida pelo caos, crianças na calçada, pais desesperados, duas viaturas da polícia. Meu coração acelerava enquanto o mundo me engolia. 

O corpo do meu filho só foi liberado para sepultamento no dia seguinte. A causa de morte era evidente, visto os hematomas em seu pescoço. Algum monstro havia sufocado o meu bebê até a morte. Ninguém sabia me responder o que havia acontecido, ou o porquê do crime, o suspeito foi encontrado morto três dias depois do ocorrido, havia se matado tomando lítio. O cheiro fez um vizinho fazer uma denúncia, foram averiguar e encontraram o corpo já em decomposição. O monstro vestia um vestido de noiva.

Meu esposo mostrou-se um banana, mal conseguia resolver o velório e o cemitério. Eu desabei e não tive ninguém em quem me apoiar. Minhas amigas me visitavam uma vez ao dia. Isto não era o bastante para mim. Minha família morava em outro estado, uma irmã conseguiu licença para ficar comigo por duas semanas e depois partiu. Estou sozinha e mergulhada em benzodiazepínicos. Quantas vezes já me peguei pensando em tomá-los todos e livrar-me desta dor?

Minha sogra retirou daqui de casa todos os pertences do meu bebê, sem a minha permissão, ainda assim tudo me lembrava ele. Eu, aos poucos, perdia minha autonomia. Outras pessoas faziam escolhas por mim, eu era jogada de mão em mão. Pensava apenas no divórcio e no amigo do meu filho que permanecia em coma no hospital. Seria a dor daqueles pais maior do que a minha? A eles era permitido alguma esperança. Eu nem tive o direito de exigir justiça para o assassino do meu filho. O inferno há de fazê-lo pagar.

Disseram que estou vivendo um estresse pós-traumático, e que as visões que tenho do meu pequeno Gabriel um dia irão passar. Estou enlouquecendo e afastando ainda mais as pessoas. Vejo sombras correndo pelos corredores aqui de casa, tenho medo de tomar banho sozinha. Meu unigênito está tentando se comunicar comigo, eu sinto isso. Meu bom Deus ouviu minhas preces, está me concedendo a graça de poder continuar a vê-lo, tê-lo aqui comigo. Só ainda não descobri uma forma de me comunicar com ele. Vou recorrer ao pastor. 

A TormentaWhere stories live. Discover now