AS POUCAS PALAVRAS DE UM ANTIGO MORADOR

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Toda manhã era a mesma coisa. Moradores do andar de baixo desciam as escadas, a caminho do trabalho. As crianças choravam e os cachorros latiam. Moradores do andar de cima ligavam o som. Nada valia a pena naquelas condições. A água faltava uma vez ou outra, e a luz a seguia. Televisores nos consolavam com as notícias de que havia lugares piores que aquele.

Sempre odiei a forma como moradores do andar de cima se achavam superiores aos do andar de baixo. E se achavam por causa de pequenas besteiras, como o violoncelo em suas músicas, e como suas crônicas sempre começavam descrevendo o inverno. As crianças do andar de cima tinham bibliotecas, e as do de baixo tinham carrinhos feitos com garrafas. No andar de cima as refeições eram momento de união, e no de baixo eram para saciar a fome.

Os passos no andar de cima me incomodavam, mas eu nunca fiz questão de reclamar. Eu nem sabia quem morava acima de mim, e nem quem morava embaixo. Mas quem morava embaixo nunca reclamou dos meus passos. No meu andar falava com poucos, e eles falavam com menos ainda. Era como se cada andar tivesse seu mundo. Eram minoria os que se comunicavam com moradores de andares diferentes. Sempre foi estranho isso. Como podíamos beber da mesma água e não nos falarmos?

Os programas de televisão eram diferentes para cada andar. A TV por assinatura só pegava no andar superior, e lá a internet era melhor. Eu soube disso quando me mudei. Subi um andar. Foi quando percebi que havia um elevador no prédio. Percebi que mesmo me mudando, continuava com um andar abaixo de mim, e outro acima. E o andar de cima continuava a se achar melhor que o de baixo. Os motivos para se sentirem superiores eram besteiras, como as televisões maiores, os pequenos animais de raça, o ar condicionado, o aquecedor. Eu nunca me senti melhor que os andares abaixo de mim, mas os superiores me entristeciam constantemente com seu orgulho desnecessário.

Eu odiava, em alguns dias, morar ali. Mas nunca ousaria me mudar como muitos fizeram. Comecei a tentar me comunicar com todos, afinal, a água que descia no ralo de nossos banheiros ia para o mesmo lugar. Consegui ver um pouco de diferença após uns anos. Mais pessoas se falavam, finalmente, alguns poucos pareciam que moravam no mesmo prédio, e moravam.

Foi em um dia de inverno, com os violoncelos acompanhando a canção, que eu deixei aquele prédio. Espero que o morador do andar de baixo não tenha se incomodado com o barulho do meu corpo caindo no chão. Tive o privilégio de olhar pela janela uma última vez. Ver as crianças de andares diferentes brincando juntas foi a última alegria deste antigo morador.

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