Capítulo Único

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Quando o display do despertador marcou 00:14, ela ouviu a porta do quarto de seus pais ser fechada. Respirou fundo, enquanto um misto de alívio e ansiedade tomavam conta de seu peito. Levantou-se da cama e sentiu as pernas formigarem. Tentou ver onde estava a sua mochila, mas o quarto estava mergulhado em um completo breu. Foi tateando o chão com os pés até esbarrar na volumosa mochila.

Apesar de a escuridão deixar a situação um pouco mais reconfortante, ela sabia que precisaria de luz. Abaixou-se e pegou as velas e o esqueiro que havia escondido debaixo de sua cama, agradecendo mentalmente à sua mãe por ter esquecido da existência daquela caixa de velas no fundo do armário da cozinha.

Ficou de joelhos em frente ao espelho e acendeu as quatro velas, posicionando-as estrategicamente para que a iluminassem bem e para que não ficassem perto de nada inflamável. Colocou-se de pé novamente, torcendo para que não desse início a um incêndio.

De repente, lembrou de algo. Tirou o lençol branco da sua cama, o torceu e colocou no batente da porta. Não poderia arriscar que um dos seus pais simplesmente acorde e veja luz vindo de seu quarto. Respirou fundo e sentiu seu corpo começar a tremer.

De onde estava, podia ver o seu reflexo no espelho e era... Deprimente. As olheiras estavam enormes e, juntamente aos olhos inchados e vermelhos eram, definitivamente, o que mais chamava atenção em seu rosto magro e pálido. O cabelo preto e curtíssimo estava ensebado, fazendo-a se sentir um lixo.

Respirou fundo - mais uma vez - e começou a tirar suas roupas, nunca desviando os olhos do seu reflexo. Lágrimas desciam por suas bochechas e, ao terminar de se despir viu o motivo de toda a desgraça que estava acontecendo em sua vida: seu corpo. A luz alaranjada emitida pelas velas não tornavam aquela visão menos desagradável. Secou suas lágrimas e jogou as suas roupas na lixeira. Não queria mais vê-las.

Foi até a cama, abriu a mochila e espalhou tudo o que estava dentro sobre a cama. Sorriu, aprovando tudo que Marina havia escolhido. O vestido longo de cor azul-bebê, o salto-alto branco e o colar de brilhantes (que apesar de saber que era falso, preferiu pensar que realmente possuía pedras de diamantes). O grande estojo de maquiagem a encantava, mas entre todas aquelas coisas, o que mais chamava sua atenção era a peruca. Era comprida e de cor preta, como seu próprio cabelo. Sorriu mais uma vez e sentiu o gosto salgado das lágrimas.

Tentou se acalmar e foi até o seu guarda-roupa. Vestiu duas bermudas - as mais apertadas que tinha - e vestiu o sutiã que havia roubado no vestiário da academia de balé há alguns dias. Pensou em compensar a falta de seios colocando meias ou papel no sutiã, mas acabou desistindo dessa ideia. Andou silenciosamente até a cama e pegou o estojo de maquiagem juntamente com os pincéis, cílios postiços e batons. Começou cobrindo as olheiras e passando base no rosto. Seu nervosismo a fazia tremer enquanto ela tentava recordar de todos os tutoriais de maquiagem que havia assistido no último mês.

A felicidade que sentia naquele momento era inexplicável. Assim que terminou de passar o blush, passou a passar sombra em suas pálpebras e o tempo foi passando tão rápido que logo ela estava colando os cílios postiços desajeitadamente. Quando finalmente olhou seu reflexo no espelho após a pequena transformação, sentiu uma pontada no peito. Estava feliz por se sentir mais bonita, mas a tristeza ainda estava presente. Seu coração partia-se em milhões de pedacinhos só por lembrar do que sua família e seus amigos lhe disseram.

Lembrou a si mesma que o que foi dito não importava mais. Escolheu um batom claro e passou nos lábios. O despertador já marcava 02:45. Sentia-se mais completa agora. Colocou tudo que havia pego sobre a cama e logo seus olhos pousaram sobre o vestido. 

 - É... perfeito - sua voz grave sussurrou.

Rapidamente o vestiu e encarou o salto branco, ponderando se devia ou não usá-lo. Logo desistiu dele, pois faria uma longa caminhada e ele só a atrapalharia. O próximo passo é colocar a peruca. Teve um pouco de dificuldade, mas ela não desistiria tão facilmente da peruca e logo a encaixou perfeitamente em sua cabeça. Ficou impressionada com o resultado final. O cabelo ia até a altura da sua cintura em belíssimas ondas negras e ali, finalmente ela se sentiu satisfeita com sua aparência.  Finalmente ela sentia-se como ela.

Seu coração batia descompassadamente e ela não conseguia parar de sorrir. Era ela mesma pela primeira vez desde o seu nascimento e a felicidade que ela sentia era ilimitada e quase palpável. Finalmente o pênis que havia entre suas pernas não a forçava a ser alguém que não era. Ela se sentia linda pela primeira vez em anos e queria que essa sensação de liberdade nunca fosse embora.

Calçou os chinelos, pegou a carta que havia escrito e colou-a no espelho com uma fita durex, tirou a mala que continha todas as suas roupas... Não. Não as suas roupas. Pegou a mala que continha as roupas de Adam, lembrou-se das roupas que havia jogado no lixo, as recolheu e deu um jeito de colocá-las dentro da mala - que parecia estar prestes a explodir. Pegou a mochila e antes de finalmente deixar o quarto, deixou uma mensagem escrita com batom vermelho no espelho e apagou as velas.

Saiu rapidamente pela porta do quarto e caminhou lentamente até a saída da casa. Foi difícil manter-se em silêncio, mas conseguiu. Logo se viu do lado de fora, mas ainda não se sentia aliviada. Deitou sua mala e a abriu. Em menos de um minuto já havia jogado todo o litro de álcool  nas roupas e acessórios e iniciado uma fogueira com as roupas de Adam. Tirou o pequeno recipiente de Aldicarb da mochila e deixou a mesma ao lado da mala antes de correr até o seu refúgio.

Tinha medo de que alguém a abordasse no caminho, mas felizmente as ruas estavam desertas. Suas pernas já estavam tremendo quando ela finalmente chegou ao parque. A escuridão do parque era ainda mais reconfortante que a escuridão de seu quarto, mas ainda assim ela se arrependeu de não ter comprado uma lanterna.  Então ela começou a andar sem rumo entre as árvores, tentando achar o lugar certo - mesmo que não existisse um lugar certo.

Parou entre duas árvores grandes e sentou-se apoiando as costas na maior. Ela já havia se perdido e estava cansada, então decidiu que aquele lugar era perfeito. O céu parecia estar começando a clarear e ela ficou encantada com a possibilidade de morrer durante o nascer do sol. Abriu o potinho de Aldicarb, pegou três "bolinhas" de chumbinho e os ingeriu.

 - Está feito... - uma lágrima desceu pelo seu rosto.

Lembrou-se dos aniversários e festas do último ano. Lembrou-se de como percebeu o quanto odiava seu próprio corpo e como queria apenas arrancar aquela coisa presa entre suas pernas. Lembrou-se das vezes em que se vestia com as roupas da mãe quando era apenas uma criança e da surra que seu pai lhe dera quando descobriu. Lembrou de sentimentos que tinha por si mesma como nojo, vergonha e raiva. 

Sua cabeça começou a girar quando o céu estava em um azul pálido, quase chegando ao mesmo tom do seu vestido. E sua mente tornou a vagar entre as suas memórias. Lembrou-se de todas as surras que o pai lhe dera nos últimos meses e de como gritava dizendo que aquilo era para o seu bem. Com o passar do tempo, ela percebeu que nunca teria o apoio dos pais e recorreu aos amigos. Contou a eles como odiava a si mesma e como achava que seria mais feliz se houvesse nascido como uma mulher, mas eles apenas zombaram e bateram nela. 

Não estava arrependida da decisão que havia tomado, muito pelo contrário: nunca se sentira tão bem na vida. Ali, sozinha naquele parque e esperando pelo alívio que a morte traria, ela estava feliz. Feliz por finalmente ser quem ela era de verdade e por não ter ninguém a julgando por isso.

De repente ela se deu conta de algo: nunca havia escolhido seu nome. "Adam" era o nome que seus pais haviam escolhido, mas ela os odiava. Pareceu de bom tom escolher um nome para si mesma. Um nome que combinasse com quem ela era de verdade. Sentia seus olhos pesando quando lembrou de um quadro que havia visto em um dos seus livros de artes. 

Sorriu ao perceber que havia achado o nome perfeito. Aquele era o seu renascimento e ela sentia-se como a mais bela das mulheres. Sim... Sim! Ela olhou para o céu uma última vez e pediu para ser feliz em sua próxima vida. No segundo seguinte a escuridão veio.

Havia nascido como Adam e isso foi a desgraça de sua vida. Mas morreu ali como uma belíssima mulher. Morreu como Vênus.

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