Na bancada do barzinho sempre bem frequentado, Arthur apreciava um chopp bem gelado como se aquele fosse o último ato de sua vida. A cabeça ainda doía da gira que ocorrera na noite passada. Ele se orgulhava muito da entidade que carregava consigo. Aquela dama, sempre vestida em trajes únicos... cheios de vida e glamour. Muito o admirava que ela ainda não estivesse por ali, falando alguma besteira com uma taça de Martini Rosé na mão, provavelmente vestida num vestido em alta-costura, bordô, calda de sereia. Cintura fina, corpo esguio, alta estatura, lábios vermelhos, olhos azuis, boa postura. Ela era encantadora. Não se assemelhava à aquela imagem sem pudor a que as pessoas associavam as pomba giras. Vinha sempre de forma única e até na alta gargalhada se via classe num jeito de menina. A voz do médium não afinava, como era de costume na casa que ele frequentava. Ninguém entendia. "É ekê!" - muitos diziam. Antes fosse, seria tão mais fácil. Mas bem se sabia a força daquela mulher logo que ela começava a cantar como ninguém, a dançar como ninguém. Sempre chegava depois que duas ou três já estavam na roda e saía puxando com glória as outras moças. Sempre próxima das que em vida foram como ela. O cabaré nunca foi seu lugar preferido, e com as mulheres de lá, quase não falava.
Brasília não tinha praia, mas Arthur se dirigia para a orla do lago que ficava ali perto. Ela precisava da força dela. Precisava da força da água. Precisava dela. Pomba Gira da Praia... Ou Praiana, como se apresentou da primeira vez em que resolveu dar as caras naquele corpo. Após as canecas de chopp no bar, na beira do lago, não haveria oferendas, nem padê, nem martini, nem incorporação. A lua se enchia no céu como um farol, e o oráculo seria aberto. Algumas coisas precisavam ser reveladas. Não para Arthur, mas para uma grande amiga que enfrentava uma fase problemática sem fim.
23:45H
Sentado as margens do lago, observando constelações aleatórias no céu, Arthur esperava Tainá. Uma grande amiga, quase uma irmã, se é que não já fosse. Ela apareceu. Uma princesa. Apesar dos ventos frios e da marola agitada na noite em que a lua irradiava no céu, ela vinha com uma saia longa, renda negra, godê e uma camisetinha simples cor de céu o que a deixava ainda mais singela - mal sabendo os outros que ali estava um mulherão daqueles. Os olhos esfumados de pigmento amarronzado, delicada. A boca cintilando, sem cor forte aparente. Pele perfeita. Os cachos negros e curtos, na altura dos ombros, esvoaçavam com o vento junto com a saia mais negra ainda. Fada ou sereia? Quem poderia responder? Numa noite daquelas, na beira da água, filha de Yemonjá tinha que arrasar mesmo.
- Eu pensei que você não fosse conseguir! Que maravilha te ver por aqui! - disse Arthur.
- Projetar a alma pra centenas de quilômetros de distância não é fácil, mas a lua no céu ajuda e a Estrada está de pé, ela não apareceu por aqui?
Neste momento se abraçaram com grande afeto. A distância entre eles não significava nada. Ainda que o corpo de Tainá não fosse matéria física, havia ali uma profunda troca de energia. Afastaram-se e se olharam. Ele olhava como um gatinho. Ela, como um panda. Pura fofura misturada ao mistério da brisa gelada.
- Estrada? Não a vi... Nem ela e nem Praiana. Acha que estão juntas? - Ele respondeu.
- Não sei dizer. Estrada é arredia, não costuma se juntar as outras moças mas por uma boa causa ... Pode ser que estejam.
- Entendo ... Bem, a projeção vai começar a perder força, é melhor começarmos logo! Dentro de um mês poderemos fazer isso pessoalmente.
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Mar em Terra de Estrada
Short StoryNem toda bruxa é pombagira, mas toda pombagira é bruxa! Este é um livro de contos baseado em minhas vivências. Toda história narrada aqui é de minha autoria e surge diretamente de minha caixola. A narração gira em torno de duas entidades: Pomba Gir...