Noite fria de outubro. A sala parecia estar tão cheia e vazia ao mesmo tempo. Havia algum tipo de movimentação além de Arthur andando de um lado para o outro com um copo de rum na mão, mas quem saberia explicar o que era? O apartamento era pequeno mas muito bonito. Dotado de bom gosto e elegância, a decoração puxada pro rústico, mas ainda assim contemporâneo. Cores neutras nas paredes, o marrom amadeirado nos móveis, peças de pallet, um vaso ou outro com alguma erva aromática que com certeza não ocupava seu lugar por acaso. Tudo ali tinha uma função.
O feitiço feito 24h antes pra ajudar uma moça que precisava de um emprego já havia sido levantado, tudo limpo. A casa limpa como sempre, ar fresco entrando pelas janelas, cortinas tão alvas quanto o próprio Cristo. O que diabos é que estava acontecendo? O copo de bebida repousou sobre a mesinha de centro e Arthur sobre a poltrona. Todas as vezes em que era invadido por aquela sensação alguma coisa acontecia. Ele cogitou a possibilidade de lançar as cartas mas já sabia de ante-mão que a resposta seria rala, subjetiva. Isso porquê aquela sensação precisava simplesmente ser sentida. Não valia encanto, oráculo, chá, remédio. Nada. Era apenas esperar a intuição gritar o próximo passo e ir vivendo a agonia.
Depois de meia hora esperando algo acontecer, lá estava ele. Adormecido como urso em inverno. A verdade é que o corpo estava cansado. Quase nunca Arthur estava em casa. Amava a noite, os passeios, os bares, as baladas, o movimento. O céu cheio de estrelas aconchegava mais que o sol das 15h da tarde em Brasília. Ele era da noite a noite, ela estava nele e ele nela. Mas era preciso repousar, embora o cochilo não fosse durar muito.
***
No meio da mata se via uma clareira, e no centro desta uma casinha antiga bem simples de telha colonial. Ao redor da casa haviam estradinhas de terra que se encontravam, formando um quadrado. A casa tinha uma varanda, telhas e portas de madeira avermelhada. Tudo bem conservado apesar do tempo.
Eu sentia que devia me aproximar, mesmo com medo. Entrei porta a dentro. Tive a visão de uma sala enorme e muito bonita. As paredes forradas com um papel de parede vermelho bordô adornado de arabescos dourados, forro de madeira no teto, piso polido no chão, estofado negro, poltronas dispostas nos cantos e sobre a mesinha no centro uma garrafa de whisky, um litro de martini e duas taças. Lá estava eu olhando as árvores pela janela e sentindo o vento tentando entender que lugar era aquele (embora eu já soubesse, só não entendia).
O vento soprou mais forte e balançou meus cabelos. Me virei e ela estava lá. Deslumbrante Cigana da Estrada.
- Me deixou sentir esse desespero todo só pra falar comigo? E vestida de branco? Você não existe! - eu disse a ela enquanto me dirigia a poltrona a sua frente. Cruzei as pernas e repousei os braços, estava pronto para ouvir.
- Bem, casa dos outros não é minha casa, é melhor assim. Certo que eu poderia ter escolhido um caminho mais fácil mas você sabe como eu sou. Tenho necessidade de causar. O uso do branco é pra parecer santa antes de lhe dar um esporro. Vamos, encha as taças, beba comigo!
Ela era linda demais. Trajava um vestido ciganinha longo, branco com as mangas vazadas, um espartilho vermelho sangue colocava os seios lá em cima. Adornada de ouro com sempre. A sandalinha de couro nos pés e o vasto cabelo negro pendido pra trás por uma tira de pano vermelha. Lábios rubros, olhos delineados. Infinitamente poderosa.
Enchi as taças, martini pros dois. Brindamos e puxei assunto:
- E então, me diga, o que te fez me por aqui?
- Simples, Praiana. O que você acha que está fazendo da sua vida?
Os olhos de cigana fria e dissimulada me rasgaram. A garganta deu um nó e tratei de dar um gole na taça de cristal que era pra ver se a culpa descia junto com o álcool.
- Olha, eu sei que estou em débito mas ... Precisei de tempo pra respirar ...
- Você vai é PARAR DE RESPIRAR se deixar ela de lado! Está louco ou o que? - ela gritava e eu me chorava por dentro, havia feito besteira. - A ultima vez que você a viu foi quando esteve com minha menina, olha o tempo que faz!
- Ela está muito chateada?
- Não. Você sabe que não. Só está sem forças. A pobre já não via ejé a tempos, parou de descer pra trabalhar e aí lascou tudo. Mas ela está te esperando assim como a cabocla, corre que dá tempo!
A essa altura minha bebida já havia acabado e eu nem queria mais. Precisava resolver isso.
- Muito obrigado Estrada, de verdade.
- Nós é que agradecemos. O aiyê precisa de gente como você. Não jogue isso fora. - ela já havia terminado a bebida também. - Vou te mandar de volta, estão te chamando. Corra com esse corte e não me faça merda, você precisa dela bem mais do que ela precisa de você.
Estrada se levantou, abriu a porta e parou por um instante. Botou o pé pra fora e antes que colocasse outro Arthur despertou com alguém batendo à porta. Era uma cliente das clássicas. Separara do marido e queria consultar as cartas.
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Mar em Terra de Estrada
Short StoryNem toda bruxa é pombagira, mas toda pombagira é bruxa! Este é um livro de contos baseado em minhas vivências. Toda história narrada aqui é de minha autoria e surge diretamente de minha caixola. A narração gira em torno de duas entidades: Pomba Gir...