Desviando de mais uma árvore ele viu novamente o bode na luz minguante de fim de dia. A criatura estava no topo de uma pedra, paradinho. Que raios se passava na mente de um bode de correr mata adentro a toda para então estancar, absolutamente imóvel, sobre uma pedra de clareira? Se entrasse na clareira, o bode decerto desataria a correr de novo. Olhou para o chão em busca de algum galho, pedra ou coisa que servisse para fazer ainda não sabia bem o que. As folhas estalaram dentro da clareira, o maldito bode aproveitava sua distração para fugir. Não, o bode continuava sobre a pedra, e agora deitado. Ao lado dela, uma figura de véu negro acariciava sua cabeça lentamente. Na clareira silenciosa, podia ouvir o barulho do afagar nos pelos. Ajeitar os pés sobre as folhas era praticamente tocar um alarme indicando sua presença, pior ainda pensar em sair dali pelo campo minado de folhas e gravetos. Outra com um véu semelhante chegou, ao que a primeira deixou o próprio véu cair sobre os ombros. Ele a reconheceu imediatamente, era Denise, filha de Dalton e Lurdinha.
– Eu te conheço, irmã, pois sou você tanto quanto sou eu. Juntas somos uma com a terra e o fogo.
Seguiu acariciando o bode, depois parou por um minuto, usando as duas mãos para subir na pedra e então continuar o cafuné, balançando as pernas. Não demorou muito para que chegasse uma terceira e a segunda então tirasse o seu próprio véu e repetisse as mesmas palavras. Fernanda, uma das professoras da escola. Depois Clara e então a própria Lurdinha. O ritual se repetia a cada nova chegada, ao todo mais de dez. Algumas delas conversavam em sussurros e o silêncio já não era total, de forma que ele se arriscou a sentar em uma posição minimamente confortável. Cada véu que baixava revelava uma mulher conhecida de Boa Parada.
Chegara à cidade alguns meses antes. Depois da Ordenação, recebeu logo a notícia de que devia arrumar as malas e dar adeus ao Rio. Dois dias e três ônibus depois, chegava à praça empoeirada da vila em que a cada ano mais o gado superava o número de habitantes. Seu pároco, padre Antônio, já passava dos setenta e tinha dificuldade para realizar muitas das tarefas diárias na manutenção da pequena igreja. Já nos primeiros dias visitou amigável o pequeno quarto do recém-chegado.
– O que está achando da cidade, Leonardo? – disse se apoiando contra a janela.
– Boa. É... Leo.
O velho riu, simpático.
– Há muito tempo oro e escrevo pedindo que mandem alguém para cá, sabe? Eu vou morrer logo – o moço tentou interromper, mas o outro apenas continuou sem se importar – e as pessoas daqui têm dificuldade de confiar. Não me entenda mal, é um povo muito generoso. Mas eu não queria partir sem ter certeza de que existe alguém aqui, olhando pela comunidade.
O padre sempre se mostrou extremamente amoroso com as pessoas da cidade, bem humorado até, mas rígido. Era para a cidade, assim como a igreja para a praça, o prédio mais alto. O ponto de referência moral, a que todos escutavam quando badalava seus sinos. E em sua sombra acolhedora e definitiva, guiava Leonardo pelos caminhos da vida espiritual e comunitária. O jovem tinha muito tempo sozinho, com deus. Procurava o que fazer e em meio à limpeza do salão e orações, às vezes aparecia o velho para elogiar o seu empenho. Também andava pela cidade, conhecendo um novo pedaço a cada dia, conversando com os habitantes e entrando observador nos comércios. Aos domingos, pela manhã, via toda essa gente de novo na missa, com suas melhores roupas. Já na primeira delas foi convidado ao púlpito para algumas palavras nervosas, incentivadas por um grande sorriso do padre Antônio. Pouco a pouco foi ganhando novas responsabilidades, como o sacramento da confissão e, em tempo, já dividia as tarefas quase por igual. Atendia os fiéis nas suas querelas e, embora às vezes pedissem especificamente para ter com o velho, nunca descartavam suas palavras apesar da pouca experiência. Por meses tudo tinha sido calmaria. E então agora lá estava, escondido atrás de uma árvore, mal podendo se mexer, depois de ter seguido um bode mata adentro.
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Contos que Vêm dos Outros
Short StoryPara escrever contos que partam de desafios, propostas, concursos, etc.