Quando recuperei a consciência, eu tinha certeza que estava prestes a morrer.
"Eles me traíram... Eles vão me matar! Eles vão...", pensei, rolando para o lado, tentando escapar. Me pus de pé e tentei correr, mas acabei tropeçando em algo duro e desabei no chão; lá fiquei, de cara na terra, por longos minutos, enquanto meu coração se acalmava lentamente. Respirei profundamente e olhei em volta. Eu estava em um cemitério, que se estendia a perder de vista, ao pôr-do-sol. Árvores mortas e desfolhadas se elevavam a intervalos por entre as lápides, que pareciam ter décadas de idade: estavam todas em ruínas e rachadas, com exceção de uma, lustrosa e alaranjada, a poucos passos de mim. O cemitério estava deserto: nenhum som ou movimento quebrava a calmaria no ar, me dando a ligeira e perturbadora impressão que eu era o último ser humano da face da Terra.
Olhei em volta, completamente aturdido. Onde eu estava? Que lugar era aquele? Por que estava desmaiado ali? E... quem eu era?
Tentei me lembrar de algo que pudesse esclarecer aquela situação, mas simplesmente não consegui. Por mais que eu tentasse, não conseguia me recordar de absolutamente nada; minha memória era um livro em branco, exceto por pequenas informações: meu nome era Vitor. Sim. Eu tinha 16 anos, e estava... sob ataque? Alguém havia me traído, disso eu lembrava; só não me lembrava quem, nem qual fora a traição.
Olhei em volta novamente. O cemitério estava calmo e vazio, exceto por fileiras e mais fileiras de lápides, que estavam ficando indistintas à medida que a escuridão e o frio chegavam, furtivos, enquanto o sol se escondia. Apenas de eu não ficar nem um pouco animado com a escuridão, nada naquele lugar insinuava um ataque iminente. Será que eu apenas sonhara com a sensação de perigo?
Um vento frio arrepiou os meus cabelos e me fez notar pela primeira vez que eu estava usando uma blusa preta e quente de zíper, com um capuz. Usava também um jeans comum com um tênis AllStar e, por baixo da blusa, uma camiseta branca, notei. Tudo sem marcas ou estampas, limpas mas gastas. Infelizmente, aquelas roupas não me traziam nenhuma lembrança... Ou será que traziam?, pensei, quando algo me ocorreu. Procurei nos bolsos, tanto da calça quanto da blusa, mas nada encontrei. Sentindo o medo gelar meu estômago, sentei numa lápide, com o rosto entre as mãos.
- Ok, você tem que manter a calma - eu disse para os meus dedos. - O que vai fazer agora? Procurar ajuda? Está muito escuro para isso. Provavelmente não vou encontrar ninguém à noite; o melhor é achar um abrigo e esperar amanhecer. Deus me ajude, vou passar a noite em um cemitério! - a ideia de fantasmas acabara de me ocorrer, e eu desejei ardentemente que não o tivesse feito.
O sol já havia desaparecido completamente quando comecei a procurar.
Encontrar um abrigo, no entanto, se provou quase impossível, uma vez que a escuridão era quase total. O céu era puro breu, exceto por uma mancha branca um pouco maior que uma estrela, que parecia ser a Lua, pairando sozinha e diminuta no firmamento, e cuja luz era incapaz de iluminar o que quer que fosse. Tive de andar com as mãos estendidas à frente, aos tropeços, tateando as lápides, as procura das casinhas que lembravam mausoléus, que eu vira antes do cair da noite, e que poderiam servir de abrigo contra o frio.
Tateei, tropecei, me machuquei, levantei, caí de novo, levantei e continuei. O frio aumentara tanto que minha blusa era inútil: comecei a sentir arrepios pela espinha, além dos músculos enrijecidos; antes que eu pudesse contê-las, lágrimas indesejadas encheram os meus olhos, nublando a minha vista e tornando ainda mais difícil a caminhada. Tropecei novamente e desabei no chão, e dessa vez não me preocupei em continuar. Simplesmente fiquei caído, de cara no chão, às lágrimas, enquanto o frio fazia meus dentes baterem.
E por que estava chorando, nem eu mesmo sabia. Simplesmente me senti sozinho, abandonado, como se alguém tivesse me deixado naquele cemitério como quem joga uma roupa velha e rasgada no lixo, como se eu fosse um ser desprezível que não merecesse a companhia de outros serem humanos. Me encolhi no chão duro e frio, tremendo e soluçando.
Não sei quanto tempo fiquei naquele chão, lamentando a minha solidão; pareceram horas. Só sei que, quando minhas lágrimas secaram e eu consegui parar de tremer, uma brisa quente e inesperada assobiou em meio ao ar gelado da noite, e me envolveu. Embora tenho durado pouco tempo, ela teve o efeito de um estimulante sobre mim. Era como se uma voz querida estivesse me dizendo palavras de incentivo, para que eu não desistisse; não importa quão escura e fria esteja a noite, ela dizia, logo depois dela vem um glorioso amanhecer.
Me pus de pé e retomei minha busca por abrigo, desta vez mais confiante; deixei para pensar na minha amnésia e aparente solidão depois, naquele momento eu precisava me abrigar do frio e do vento. A sorte parecia estar a meu favor: logo identifiquei os contornos de uma daquelas casinhas de pedra que serviriam perfeitamente como abrigo.
O lugar estava quebrado e em ruínas, e a porta, que estava entreaberta, pesava uma tonelada; rangeu como o gemido de morte um morimbundo quando a empurrei, arrepiando os pelos que ainda não estavam arrepiados no meu corpo. Foi aí que notei que o mausoléu não estava vazio.
Ao ver aqueles olhos vermelhos e malignos a me fitar, um instinto, enterrado bem fundo no meu subconsciente, ativou-se na hora, deixando todo o meu corpo em estado de alerta, enquanto um único pensamento explodia na minha mente: Estou em perigo.
Reagi instintivamente: mal vi os dois olhos vermelhos se mexerem no fundo do mausoléu, me abaixei e pulei para longe, enquanto uma mandíbula cheia de dentes afiados se fechava no lugar onde minha cabeça estivera um segundo antes. A coisa emitiu um grunhido de frustração por não ter conseguido esmagar a minha cabeça de primeira e disparou em minha perseguição.
Corri como nunca, o pânico aumentando a minha velocidade, sentindo o coração saltar do peito, e desviando das lápides no caminho. Eu não tinha ideia do que era a criatura que estava me perseguindo, mas seus olhos vermelhos e cruéis traziam uma palavra à minha cabeça, uma palavra que me enchia de pavor.
O vento assobiava no meu ouvido enquanto eu corria, mas tudo o que eu ouvia eram os ruídos do monstro, que corria sobre quatro patas, a me perseguir, de forma implacável. Por um momento me imaginei tropeçando e caindo, e quase imediatamente isso aconteceu: tropecei numa lápide mais proeminente mas não caí, apenas machuquei o pé. O vento estava furioso agora, como se ele também estive fugindo da criatura.
Quando minhas pernas se recusaram a continuar, me abaixei atrás de um túmulo de mármore negro, sem fôlego, e espreitei em volta, à procura do monstro.
Tudo o que vi e ouvi foi o silêncio.
Por um segundo, um belo e maravilhoso segundo, pensei que eu tinha me safado. E então cinco garras, tão afiadas e compridas como facas, emergindo diretamente da escuridão, retalharam o meu estômago; fui levantado e atirado longe pela criatura, que aparecera à minha frente, rosnando em triunfo.
Tal a força com que fui atirado, que caí e rolei pelo solo, quebrando várias lápides pelo caminho. Quando parei de rolar, não conseguia sentir nada além de dor, dor que me dilacerava por dentro e por fora, dor que apagou qualquer outro pensamento da minha mente, dor que me faria perder a consciência dentro de pouco.
Mal conseguia ouvir minha própria voz urrando de agonia; minha mente virara um poço de dor, que ia me entorpecente rapidamente. "Então é aqui que tudo acaba", pensei. A criatura da escuridão iria aparecer a qualquer momento para acabar o serviço. Estremeci. Estava tão frio. Tão frio.
Ouvi um rosnado diferente do da criatura, seguido de sons distantes de luta, mas a escuridão estava a entorpecendo a minha mente, me chamando para um longo e doce descanso. Não resisti, acolhendo de bom grado a ideia do fim da dor.
Não sei como, mas, antes de desmaiar, consegui focalizar meu olhar na minha mão direita. Apertei fracamente entre meus dedos o objeto que ali estava.
"Estarei delirando de dor? Posso jurar que isso apareceu do nada", encarei aquilo por um instante, antes que meus olhos se fechassem. E foi com a imagem do arco de madeira branca, de atirar flechas, preenchendo minha mente, que finalmente perdi os sentidos.
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O Pecado dos Anjos
Mystery / ThrillerUm garoto acorda em um cemitério, à noite, sem ter ideia de quem é e de onde veio. Seu passado, no entanto, é a chave para a sobrevivência no mundo no qual ele acorda: devastado, impiedoso, frio e cruel. Em quem ele pode confiar? Como diferenciar o...