Por vezes ela gostava de se refugiar nos seus joelhos. Eram o seu porto seguro, o seu ponto de apoio naqueles momentos de dor. Ela arrepanhava-lhe o coração, como se o estivesse a consumir aos poucos, sádica e languidamente. Metiam dó, os seus jeitos insensíveis e toscos.
Aquela dor era a criatura mais horrenda que alguma vez existiu. Não havia nada mais medúsico, nada pior que a dor que carregava no seu jovem peito. Nem a morte a poderia vencer, pois a sua gelidez é o que lhe sucede. Ambas caminham lado a lado, nunca há morte sem dor. Depois de jornadearmos pelas suas travessias contorcidas e tortuosas, vem a escuridão duradoura. E isso nem é assim tão mau quando equiparado à dor, pode até ser um renascer.
Mesmo que a menina abrisse os olhos, só via o Nada. Estava confortável ali, de cabeça apoiada, mas os seus pensamentos perseguiam-na numa tormenta sem fim. O seu frágil corpo tremia como varas verdes. A pequena sentia que ele se quebraria a qualquer momento, sem um pré-aviso nem um único sinal.
Aninhava-se na doce solidão quando os outros se esqueciam da sua vil existência, subidamente amnésicos. Por vezes, chegava a sentir-se inútil mas as suas mãozinhas finas tentavam sempre sustentá-la a qualquer coisa. Ela sabia que tinha de aguentar e assim ia passando o tempo, esperando o dia em que tudo se cobrisse de tons claros. Um amanhecer que lhe enchesse o pálido rosto de lágrimas contidas de felicidade. Iara queria despertar para um novo começo ou um caminho qualquer que lhe abrisse passagem para algo diferente. Qualquer coisa, desde que não fosse pior que o incerto destino que tinha em mãos.
Todos os dias ajudava a sua velha tia no que podia. Era a única família que lhe restava depois de uma alcateia faminta ter devorado os que mais amava ate aos ossos. Ato expectável, vindo de bestas carniceiras, sedentas de sangue. Mas era o seu destino, ao fim ao cabo, estava escrito nas linhas intemporais que alguém se lembrou de manchar com lágrimas de tinta, lugubremente. Terá esse Alguém chorado ao criá-las? Ou ter-se-á remetido a citar um escritor anónimo? Iara nunca saberia, no entanto, acreditava que não devia gastar tempo a matutar nessas questões. Não passavam de dúvidas, perguntas retóricas e ela não era dada ao hábil e eloquente exercício de pensar demais.
Admirava o momento, as coisas que a rodeavam, o que podia tocar e sentir. Regozijava-se quando sentia as geladas gotas de chuva a caírem-lhe no rosto; o sabor salgado do mar adormecido; os encantos dos pássaros feios que pairavam e resolviam pousar-lhe nos cabelos longos como uma cascata. Oh, como ela rejubilava!
A menina, doce mas sem grande dote para a amizade, cantava melodias tristes e desafinadas quando caminhava ao pé do “seu” riacho. Não ficava muito longe de casa. Ouvia as velhas cantigas que ele lhe sussurrava ao de leve e respondia-lhe numa língua feita de serenatas infantis. Era apaixonada por ele mas não ousaria alguma vez contar-lho.
Trepava árvores, assemelhando-se a um bicho selvagem e caprichoso. Saltava nas poças choradas pelas chuvas de Inverno. Abria o seu meigo e saudoso sorriso para os livros de histórias que a mãe lhe lia antes de dormir. Recordações que pareciam longínquas, porém não o eram. Os olhos húmidos ardiam-lhe quando terminava cada conto.
-Ó mamã… se cá estivesses… - murmurava, beijando o livro com saudade ternurenta, como se aquela capa dura fosse o rosto macio da sua amada mãe.
Iara abriu os olhos repentinamente. Teria adormecido? Não tinha a certeza. Espreguiçou-se, ajeitou a saia de lã, colorida com riscas azuis e vermelhas e correu para junto do riacho. Sentou-se num pneu que servia de baloiço e rodopiou múltiplas vezes até se decidir a balouçar de um lado para o outro. Abriu muito os olhos cor-de-cinza, soltou a alma dorida e olhou o céu salpicado de nuvens, segredando as suas habituais cantigas de embalar ao seu amado.
Talvez o Amanhã fosse bondoso para com ela e lhe passasse os braços pela esquia cintura de menina. Talvez ele lhe devolvesse os pedaços do coração caídos mas jamais esquecidos.
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Nota da autora: Eis o meu primeiro trabalho, gostaria que não fosse tão breve mas talvez o próximo seja mais elaborado. Agradeço todas as críticas construtivas que me puderem dar.
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No conforto da sua solidão
Short StoryQuando a dor é dilacerante, todos nos tentamos agarrar a algo, nem que seja à risonha solidão. Aos olhos de uma menina, por vezes, ela é a sua única amiga.