Veneno Delas

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Parte 1 - Quando a dor éinevitável

Roberta

Chapada Diamantina: 1951


1

Roberta saiu de casa apressada. Tropeçou nos próprios pés, deixando cair os livros que levava nos braços, antes de sair pela porta de casa. Gritou pela irmã, sem resposta. Sofia estava entretida demais, conversando com sua amiga Carol. Esticou os passos no intuito de alcançá-las, mas as duas chegaram ao colégio antes dela, ignorando-a por completo.

Conhecida por sua inteligência rápida com números e respostas, Roberta Barreto fazia de seus colegas verdadeiros patetas. Levou para casa grande quantidade de singelas medalhas por destacar-se na turma com as melhores notas. Desencadeou, em consequência disso, a inveja e a inimizade das demais alunas. Sua própria irmã, Sofia, cansou de zombar de sua falta de graça, inúmeras vezes. Jamais se misturava a ela nos intervalos; eram quase desconhecidas.

Guardava alguns ressentimentos no coração; não tinha boas lembranças da infância, o pouco que recordava era a voz de sua mãe repetindo inúmeras vezes sobre o quanto ela era desengonçada e incompetente. Nada lhe era permitido ou tampouco merecido.

— Não seja egoísta, menina! Esses docinhos foram preparados para sua irmã que está doente.

— Esses brinquedos são de Sofia!

— Saia já do lugar de sua irmã, ranhenta!

Roberta não contrariava; fingia entender, mas não entendia. Não questionava e não fazia perguntas. Sabia que Sofia era a preferida, embora não entendesse o motivo. O que amenizava a dor era o carinho de seu pai. De resto, somente as frases cruéis badalando em sua memória. Fazia questão de se arrumar sozinha: colocava seus vestidinhos listrados e as meias combinando; ornava os cabelos com um laço de seda, imaginando os elogios da mãe. Quando ela descia as escadas, surpreendia-se:

— Vixe Maria! Olhem só! Que magricela feia que está isso! — Cristina dizia sem piedade.

Era o pai que se lamentava:

— Coitadinha. Não fale assim! — Tentando consertar, embasbacava-se: — É a criança mais linda do mundo!

Era o que ouvia constantemente: Coitadinha! Não fale assim dela, pobre criança! Pobre Roberta... Bastava Sofia aparecer e em uma fração de segundos os olhos dos espectadores se iluminavam, despertando o gigantesco sorriso no rosto de Cristina:

— Eis a criança mais linda do mundo!

Passou a se esforçar mais; achou que não deveria estar sendo uma boa filha. Todo fim de tarde levava flores para a mãe retiradas do campo, uma a uma, escolhidas minuciosamente. Escrevia cartinhas com versos afetuosos, empenhava-se energicamente na leitura de livros para tornar-se uma excelente aluna e, consequentemente, despertar a simpatia da mãe. Cristina se mantinha indiferente e o muito que fazia era agradecer à filha de forma cortante. Diversas vezes Roberta encontrou os versos que escrevera misturados ao lixo; as rosas que entregava morriam secas, descuidadas.

A adolescência não tardou em nascer: os seios desabrocharam naturalmente, os cabelos cresceram voluptuosos, de um castanho dourado intenso. Os grandes olhos acinzentados, um dia mortos, ganharam vida. O nariz ligeiramente torto endireitara-se com os anos, e ninguém conseguiu entender o milagre. Com a menarca suprimiram-se os agrados que fazia constantemente à mãe. Roberta passou a viver em um mundo infinitamente isolado em meio às páginas amareladas dos livros velhos. O mundo supremo e solitário de fantasias e ilusões tomou espaço em sua vida. Quando sentia o tédio inundar os anseios, trancava-se no quarto para ler, passando dias sem abrir a boca. Culpou-se por ter conhecido famílias aparentemente perfeitas; sabia que se tivessem passado despercebidas não as desejaria, pois o cérebro não cobiça aquilo que desconhece.

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