A chuva caía pesada sobre as favelas de Arendell, a lama escura escorria pelos telhados, aumentando a grossa camada de sujeira que cobria as ruas. Cada casa daquele distrito amaldiçoado tinha em sua porta uma soleira que chegava até os joelhos, inibindo o avanço da água barrenta. Era assim faz setenta anos, desde quando o topo do Monte da Águia explodiu consumindo o distrito da cidade em chamas, e depois cinzas. Arendell, a maior cidade dos cinco reinos, estava dividida por uma linha no céu. A metade coberta pela coluna de cinzas é onde os pobres moram hoje, lá costumava ser um bairro nobre, em uma parte com vista prestigiada do vale abaixo. A outra metade é onde os mais abastados vivem agora, o antigo bairro comercial, e a nova faixa de casas e mansões que se estica na direção oposta ao desastre, lugar onde um pouco de sol atravessa o denso escudo de pó.
Hoje, havia chuva, mas era impossível dizer se tal condição fazia o ar do pobre bairro melhor. Talvez muitos achassem bom um descanso do borralho e dos ventos gris, contudo aquela sujeira toda tornava impossível caminhar pelas ruas e ficava claro que aquilo não era uma pausa para ninguém. O que muitos imaginavam, era o motivo para que as pessoas não abandonassem as favelas de Arendell, ou mesmo a cidade que sofria de forma tão pesada. A razão estava descrita no decreto do Rei Alberto II, e era mantida pelo seu filho, o Rei Alberto III. Nenhum Arendeliano poderia abandonar os muros da cidade em tempos de guerra, nunca sem a ordem do Rei, sob pena de perder a vida. A guerra já durava mais de sete décadas, assim como a maldição de Arendell, que por sua vez também não era uma tragédia natural. O monte cuspindo cinzas sobre a cidade era de fato resultado de artes arcanas, e uma combinação de ganância e orgulho.
Faz muito tempo, a frota de navios de Arendell era a maior e mais brilhante de todas. Os encouraçados os mais terríveis e os cargueiros os de maior capacidade, e assim eles atravessaram mares com cargas enormes, vivas e preciosas, chegando a mapear, adicionando bordas ao mundo conhecido. Sua empreitada rumo aos oceanos era sem igual na história do continente, mesmo dadas as origens do seu povo. Esse tempo durou até que na pequena nação de Arcadia, conhecida pelas frutas e fermentados, uma pequena comitiva levou sete naus até a um novo continente. A riqueza encontrada não podia ser medida. Metais, perfumes, especiarias, sementes, frutos, pedras e cores jamais vistas, e muito mais preciosidades ainda sem nome. Arcadia pediu a ajuda do Reino de Tumbria, um povo conhecido pela sabedoria e magia poderosas, para ajudar a entender a língua do povo além mar. Tumbria, é claro, veio ao auxílio em troca de acesso às novidades e a potências itens com uso na magia. Os Arcadianos concordaram de imediato, pois eram um povo muito antigo que já não via mais prazer na guerra e na ganância da descoberta e da posse. Eles haviam abolido a escravidão, e os Reinos de Tumbria e Última seguiram seu exemplo. O Reino de Telênia era um caso à parte, um lugar onde um homem poderia se vender como escravo em troca de proteção e sustento, e depois comprar sua liberdade de volta com o propŕio trabalho, como num acordo. Arendell era o último reino escravagista até a raíz, mesmo depois de quase dois séculos de abolição em grande parte dos cinco reinos. Já os Arcadianos não tinham mais nada para si, se tornando exemplo para muitos povos nessa nova era tão atribulada em outros pontos do mundo.
No Reino de Tumbria, que estava tentando contornar uma guerra civil eterna, não houve um momento de hesitação. Lá o conflito era constante entre os clãs de Magos Sombrios e Bruxas Brancas que brigavam desde sempre pelo poder, então seu povo sabia como viver em meio a tensão. Seria impossível viver se não soubessem. Havia representantes para tudo e cada peça seria dissecada primeiro por aquele que conseguisse maior influência junto ao senado, essa guerra fria era a ordem na terra dos feiticeiros, nada anormal.
Arendell observou os dois reinos, Arcádia e Tumbria, se banhando em riquezas. Eles trocavam artes arcanas e técnicas de fermentação por tesouros incríveis. Cada sussurro retornava com notícias de mais opulência e fascinação até Arendell. Os espiões chegaram a trazer uma jóia roubada ao círculo interno, provando a qualidade do que foi encontrado. As vozes que sibilavam baixinho se tornaram altas, então aos berros o conselho pediu uma expedição para as terras orientais atrás de riquezas. O Rei Alberto II enviou o maior de seus navios às terras distantes, no entanto, meses se passaram sem retorno e as naus de Arcadia foram e voltaram duas vezes em segurança. Por fim, a razão do sucesso dos Arcadianos foi revelada. Em suas naus, eles levavam alguns dos magos e bruxas de Tumbria, que guiavam o caminho em segurança, dominando o mau tempo e as adversidades que pareciam ser muitas na rota. A resposta de Arendell foi mandar junto de seu navio cargueiro um encouraçado, armado com canhões e arpões imaginando que assim teriam maior eficiência. Nenhum dos dois jamais retornou dos mares distantes.

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Contos dos Cinco Reinos
Short StoryContos escritos originalmente para o blog "A Taverna". Mas foram recusados por não se encaixarem na proposta do evento no site. Ao Taverneiro, O Autor, meu nome é V. Italo Rodrigues, sou alguém que ama muito ficção e tem uma forte queda pelo épico...